Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Decola, nave ecumênica!


O traçado do Plano Piloto, em forma de avião, vem ao encontro do slogan: Decola, Brasília!  Decola, com alocação dos Três Poderes na cabine de comando, superquadras na sustentação aerodinâmica, turbina de cauda soltando fumaça na velha rodoferroviária. No contorno das asas não faltam luzes e radares. 

Lá estão, como estrelas guias piscando na noite escura, as paróquias de Santo Antônio, de São José, do Divino Espírito Santo, de Nossa Senhora das Dores, do Carmo, do Rosário, da Consolação; comunhões espíritas, sociedades bíblicas, capelas Batista, Metodista, Adventista e parentela; pagode asiático na ponta da Asa Sul, mesquita islâmica na ponta da Asa Norte. 

No modernismo de Brasília tal como na época das Descobertas, nau capitânia não navega sem proteção mística, sem um rezador a bordo, sem um busto de sereia ou uma carranca na proa. Só que, agora, qualquer pane na decolagem da capital brasileira já não pode ser atribuída meramente aos jesuítas.

Margarida Patriota

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Dia dos netos


Maio é o mês de Maria, mãe de Deus, e por extensão, ainda que díspar, o mês dedicado às mães terrenas. E, claro, nessa comemoração estão incluídas as avós. Sim, nós, as avós, somos mães duas vezes. Há até quem diga que somos mães três vezes, visto que os parceiros amorosos também querem cuidados maternos, nesse caso, avoengos.

A digressão me conduz diretamente às minhas netinhas, lindas como nossos descendentes sempre são...

Pois bem, um dia desses fui dormir na casa da minha filha Gi. Como sempre, Letícia, menina de seis anos, veio conversar e brincar comigo.

Entre um caso e outro, a Lê achou meu terço e, com ele, começou a provocar a gatinha Titi, que dava pulos altíssimos, buscando alcançar meu terço, resquício da fé trabalhada no colégio de freiras.

Cansada das cabriolas da Titi, Letícia deitou-se ao meu lado e perguntou:

- Vovó, quando você reza nessas continhas, Deus escuta você?
- Claro, Letícia!
- Mesmo se for bem baixinho?
- Ouve, sim!
- De verdade, mesmo?
- É sim. Eu não preciso falar nem mexer os lábios. Só de pensar na oração, Deus escuta.
- Mas que orelhona, hein, vovó!

Na opinião da Lê, Deus tem orelhas enormes, para captar a voz da humanidade. Depois desse episódio, incluí mais um desejo em minhas orações: peço a Ele para eu ficar cada vez mais orelhuda, para escutar o que meus semelhantes têm a dizer.


Edna Vieira Rocha de Rezende

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A língua como substância lúdica

Foto: Pedro Martinelli

Desde a pré-história, quando o ser humano diferenciou-se dos animais pelo desenho e pela invenção da linguagem, vem colocando todos os materiais disponíveis a serviço da sua inteligência, engenho, criatividade, comunicação e expressividade. Pedras, resinas, madeira, conchas, contas, sementes, fibras, metais, penas, sons, movimentos corporais, palavras deixam seus fins utilitários. A inquietação humana retira a matéria de seu lugar de origem e transmuta sua função, criando elementos de entretenimento e manifestação expressiva. Deslocados de sua natureza original, esses adotam novas funcionalidades, novas configurações e ecoam novos significados.

Marcel Duchamp alertou o homem do século XX para o que parecia óbvio, mas até então não tinha sido percebido com clareza: “A arte é um olhar amoroso sobre a vida”. Os objetos, desnaturalizados, retirados de seu ambiente natural provocam um estranhamento que é próprio da experiência estética. Assim também ocorre com a linguagem. As palavras abandonam sua função comunicativa e referencial imediata e penetram no mundo da polissemia, da metáfora, dos segundos sentidos. Transformam-se pela densidade que vai sendo agregada aos seus sentidos originais.

As crianças, desde que começam a descobrir a linguagem, são fascinadas pelo seu mistério e pelas suas potencialidades lúdicas. Inventam parlendas, trava-línguas, jogos e línguas secretas. A substância sonora da língua é um brinquedo. Quando transgredimos a ordem canônica, quando inauguramos uma opacidade nesse instrumento que, no quotidiano, busca transparência e referência, chamamos a atenção para suas inusitadas possibilidades e abrimos um horizonte de novos paladares, novos prazeres, novas sensações intelectuais.

A língua não se presta apenas para a comunicação, nem é transparente de forma satisfatória para a transmissão fiel de um pensamento. Em suas dobras, em seus meandros, provocando flexões inesperadas, multiplicamos suas fronteiras e trazemos maior densidade e efetividade à ideia e às emoções que queremos transmitir. No dia a dia, na nossa linguagem oral informal, exageramos muito no uso de recursos que estão disponíveis no sistema e até mesmo transgredimos o sistema para alcançar maior expressividade

Queremos tornar nossas ideias mais claras e nossos sentimentos mais evidentes. Exploramos os sons da língua por meio de onomatopeias, como se fizéssemos parte de uma história em quadrinhos: Hummmm! Tbum! Cresh! Catapum! Brouummm! Vroumm! Splash! Poc poc! Toc toc!

Repetimos frases da sabedoria popular que se transformam em filosofia de vida: Nada como um dia depois do outro! Nada como o tempo para passar! Deus ajuda a quem cedo madruga! Quem cala consente! Invertemos a sintaxe direta para despertar novos significados: Trabalho ele não quer! Repetimos para despertar a atenção de nosso ouvinte: Entendeu? Compreendeu? Tá? Né? Viu? Respondemos à fala do interlocutor com ênfase em exclamações exageradas e cheias de segundas intenções: É mesmo? Verdade? Não acredito!!! Nossa! Credo! Os nossos qualificativos extrapolam a morfologia: chiquitíssimo, estranhésimo. Pequenas frases ampliam sua possibilidade de significação e avançam sobre campos surpreendentes: Fala sério! Não é brinquedo não! O amor é lindo!

Misturamos palavras de outras línguas na nossa frase. No nosso dialeto familiar e regional reduzimos as palavras ao mínimo e nos fazemos compreender de forma quase que telepática:

Na margem de um rio, dois pescadores mineiros preparam o café:
- Po pô o pó?
- Pó pô, pó pô poquim pra não cabá o pó.

Distorcemos a pronúncia para brincar com os sentidos: Faiz Pa[r]te! Graaannnde! É véi! Hiperbolizamos os itens gramaticais para acentuar um sentido especial: Ele é “o” artista! Riu “de” mim ou riu “para” mim? Ontem você “ficou” com quem? Você já “assumiu” a moça? “Quem” respondeu? “Você” respondeu? Nem eu!

No universo da literatura, estamos acompanhados de grandes mestres transgressores. Os poetas modernistas redescobriram o Brasil por meio da língua brasileira: “Se havemos, pois, de só escrever certo portuguesmente, escrevamos errado mas brasileiramente, isto é, como fala o nosso povo.” (Cassiano Ricardo, "O homem cordial"). Oswald de Andrade denunciava em seu poema Pronominais:

“Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.”

Mario de Andrade construiu uma língua pessoal e artística, pelo processo de colagem e combinação dos falares brasileiros, que usou nos romances e na vida real: “Que mundo de bichos! Que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas os morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha, branquíssima, de certo a filharada da mandioca.” ("Macunaíma", p. 51) “E fica muito pau pra mim estar de agradandinho por cartas subterrâneas.” ("Cartas a Alceu"...,p.45)

Mas quem celebrizou-se por brincar com a expressão verbal, radicalizando a liberdade de despertar novos limites para as palavras, ao explorar-lhes a sonoridade e as possibilidades morfológico-semânticas, foi Guimarães Rosa: “E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. (Tutameia, p.104). Hoje em dia, nas vertentes abertas pelo modernismo, João Ubaldo pode exercer seu talento ilimitado. Podemos usar e abusar da língua e dizer que mesmo assim: “... esmurrando e mordendo o ar, com ferocidade, que nada, nada, nada, nada, nadinha de nadíssima, nadissimizíssima, pode acontecer com ela...” que a prejudique, restrinja ou diminua. (fragmento adaptado de "Viva o povo brasileiro", p.371). A língua está viva e por isso reage e se submete, sofre e cresce, modifica-se e amplia-se.

Não se trata de pretensão literária. Queremos explorar a linguagem, usar ao máximo os seus recursos de produção de sentidos, queremos nos expressar da maneira mais intensa. Para isso, muitas vezes, massacramos o sistema estabelecido da língua, pois como diz Luis Fernando Verissimo: “A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda” ("O gigolô das palavras").


Lucília Garcez é ex-professora da UnB e escritora, autora de “A escrita e o outro” – UnB, 1998; "Técnica de redação", Martins Fontes – 2001, e "Explicando a arte", Ediouro - 2001.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Permissão para enriquecer: você tem?


Muitas pessoas trabalham incansavelmente e não conseguem fazer fortuna. Outras são agraciadas com prêmios de loteria e não conseguem manter-se ricas. Por que alguns conseguem enriquecer e outros não?

Enriquecer é um direito de todos. Sim, todos podem. Além dos caminhos para se “fazer dinheiro”, é necessário também conhecer as emoções que pavimentam essa estrada.

De maneira bem simples, podemos dividir a personalidade humana em duas instâncias: consciente e inconsciente. O consciente é aquela parte que dominamos e da qual temos controle. O inconsciente é aquela que não enxergamos, mas está lá, agindo o tempo todo, responsável por nossa estrutura emocional e nossas escolhas.

Se você tem o desejo de enriquecer, é importante verificar essas influências inconscientes na sua vida: no seu íntimo, acredita que a riqueza é para você?

Na maioria das vezes, as decisões financeiras são tomadas a partir de alguma emoção inconsciente e não de um raciocínio lógico e consciente. Se você quer enriquecer, mas, internamente, sente temor ou acha que “isso seria bom demais pra ser verdade”, sem perceber seu inconsciente poderá bloquear o sucesso financeiro.

Sua mente funciona a partir do que você sente e não do que deseja ou pede. Se quer riqueza, mas sente receio de não conseguir, no nível inconsciente você avisa seu cérebro de que existe a possibilidade de falha. O inconsciente sempre vence, porque é a parte mais forte. Se você tem medo da riqueza, será difícil consegui-la ou mantê-la.

Assim, para prosperar na vida, antes de adquirir autonomia financeira é necessário possuir autonomia emocional, ser capaz de produzir boas emoções e ser independente integralmente, agindo como uma pessoa adulta no mundo. Ser capaz de gerar dinheiro e administrá-lo bem é uma habilidade da pessoa madura, emocionalmente falando. Se você sente dificuldade em gerenciar a sua vida em outras esferas, provavelmente isso se refletirá também na administração das suas finanças.

Como você imagina que os ricos cuidam do seu dinheiro? Você já se imaginou sendo um deles? Ter muito dinheiro dá trabalho? Essas são questões importantes a responder se você deseja enriquecer.

É fundamental ainda ficar amigo do dinheiro para perder o medo dele, afinal, o desconhecido gera insegurança. E como se tornar amigo de alguém? Encontrando-se com ele e conhecendo-o melhor, dedicando tempo para essa pessoa, certo? A mesma regra se aplica ao dinheiro. Se você quer administrá-lo de forma eficiente, é essencial que tenha tempo para cuidar dele, para estudar o mercado financeiro e conhecer as formas que a sociedade estabelece para gerenciá-lo.

Outro aspecto importante é rever os modelos que seus pais lhe passaram sobre riqueza. Eles tinham dificuldades ou facilidades financeiras? Em qualquer caso, você tem permissão para superá-los? Você se sente à vontade para fazer diferente deles? Caso enriquecesse, sua família ficaria feliz ou incomodada com a sua fortuna? Geraria orgulho ou despertaria inveja? Você foi estimulado a romper obstáculos, a desbravar o novo e superar limites? Foi-lhe ensinado que podia fazer as coisas do seu jeito, levando em consideração suas características e necessidades individuais? Era respeitado e elogiado quando resolvia problemas de forma criativa? Esses podem ser pontos de bloqueio para o enriquecimento, pois a permissão interna para a prosperidade vem, primeiramente, do nosso clã.

Se você sente que não recebeu essa permissão, experimente construí-la dentro de você, fazendo escolhas saudáveis para sua vida, seja em relação à alimentação, relacionamentos, estilo de vida, profissão e também dinheiro.

Cuidar bem de si é o ponto de partida para cuidar bem das finanças. A fortuna não aparece do dia para a noite. A natureza não dá saltos. É uma estrada a ser construída dia após dia, onde você formará pensamentos ricos, sentimentos ricos e comportamentos ricos. Vivenciando a riqueza dentro de si, ao longo da vida, você trilhará um caminho consistente para o sucesso financeiro. Acredite!



Angélica Rodrigues Santos é psicóloga, professora, consultora da Libratta Finanças Pessoais e autora do livro “Família, afeto e finanças – como colocar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar”, em parceria com Rogério Olegário do Carmo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A história de L.

Foto: Ratão Diniz


L. nasceu numa pequena cidade do interior de Minas em 1919. Hoje completaria 90 anos, se fosse viva. Era a terceira filha de um casal que já tinha dois rapazes e que, depois dela, veio a ter mais uma menina. Os dois casais de crianças não usufruíram a mãe por muito tempo. Doente, ela veio a morrer quando L. e seus irmãos eram bem pequenos. Naquele tempo, não se usava um homem sozinho criar filhos. Com poucos recursos e tendo que trabalhar muito, o pai de L. pediu a uma cunhada, irmã da falecida, que cuidasse dela pelo menos por um tempo, até arrumar outra esposa capaz de assumir a família ao lado dele. Os outros filhos foram entregues em casas de outros parentes, até que as coisas se ajeitassem para o viúvo.

Demorou alguns anos até que ele encontrasse uma noiva. A que veio não estava muito disposta a criar filho dos outros. Além dos mais, os meninos já se acostumavam com as novas famílias onde já vinham passando os anos da infância. Daí que o pai de L. se casou de novo, teve outros filhos com a nova mulher, mas não levou de volta para casa os quatro mais velhos. L. mesmo não estava nem um pouco interessada na nova mãe. Vivia na casa da tia, era tratada como irmã pelos primos. E olha que a casa era cheia. Os tios tinham muitos filhos. Da idade de L. nenhum. Ela ficava no meio, entre o mais velho e o segundo. Depois deles viriam, com o passar dos anos, mais sete. Todas mulheres. E L. virou uma irmã mais velha para as meninas. Aplicada na escola, ajudava os primos no dever de casa e nos afazeres domésticos. Embora de temperamento um pouco contido, divertia-se com aquele monte de gente alegre.

Mocinha, L. era moderna. Usava calça comprida – não em qualquer ocasião, mas, por exemplo, quando o grupo ia passear com amigos pros lados da cachoeira que havia fora da cidade. Tudo familiar, sem ousadias nem indecências. Afinal, eram todos religiosos e bem-comportados. Nas festinhas da igreja e nos passeios pela praça conheceu M., por quem logo se encantou. Ele era inteligente, alto e bonito, o que muito agradava L. porque ela também era mais para alta. Não queria namorar baixinho e fazer feio. Gostava de usar um saltinho e a companhia de M. permitia isso. De boa família e trabalhador, M. se mostrou o candidato ideal a bom partido – ainda que seu humor nem sempre fosse dos melhores, com propensão ao ciúme, o que, antes de preocupar L., lhe dava uma ponta de orgulho. De modo que a tia e o tio fizeram gosto no romance entre ele e L. Eles próprios comunicaram ao pai de L. que ela tinha um pretendente. Todos ficaram satisfeitos, porque, mesmo cursando o normal, o que lhe possibilitava a profissão de professora, o melhor futuro para uma moça de família era se casar e ter filhos. Ser mãe e dona de casa.

Foi o que sucedeu nos anos seguintes. No início dos anos 40 L. e M. se casaram ainda no interior. A estabilidade da vida de casado, no entanto, não acalmou as variações de humor de M. Aos poucos, o que eram ciuminhos começou a se mostrar algo mais irracional. M. se alterava facilmente, por qualquer bobagem. E com qualquer pessoa. Com L., naturalmente, por estar mais perto. Era o comprimento da saia, era o penteado do cabelo (deu de achar ruim até a permanente que ela fazia no cabelo e que tanto o atraía nos tempos de solteiros), era a cor do café, era o hábito dela de cantarolar baixinho. Fora de casa, também, os maus modos de M. se acentuaram rapidamente. Brigava no serviço, no comércio, na rua. Os primos chegaram a comentar en passant com L. que o amigo tinha mudado muito. Não era mais o boa praça de antes.

A gravidez de L., de um filho tão desejado pelo casal, não melhorou as coisas. Da extrema felicidade pelo momento de completude à irritabilidade com as coisinhas de grávida, como enjoos, desejos e a perda de roupa que não mais cabia, as reações explosivas e inesperadas de M. passaram a apontar algo de doentio. Algo havia, mas L. não conseguia se dar conta do que fosse. O nascimento do filho não só não contribuiu para acalmar as coisas, como acrescentou mais um elemento de tensão para L. Ela temia o que pudesse vir do marido descontrolado se o menino chorasse à noite, fizesse xixi e cocô vezes sem conta, como é próprio dos bebês, regurgitasse golfadinhas como faz qualquer criança saudável.

E era o que acontecia. Percebeu que seus temores não eram infundados num dia em que M. gritou diante do chorinho do neném e partiu para cima dele, com as mãos abertas rumo a uma palmada inaceitável – não num ser de poucos meses de idade. Mais que depressa ela se interpôs entre o agressor e a vítima em potencial, gritou mais alto que os dois e, tal qual uma leoa ou outra fêmea animal que age apenas por instinto, ameaçou-o com a voz mais grossa de que seria capaz:

– Se tocar um só dedo no meu filho, te mato!

Ele reagiu ao susto na hora. Baixou a mão, baixou a cabeça, saiu do quarto, saiu de casa. Ela pegou o bebê no colo, correu até a casa da tia e pediu ajuda a primos, primas e maridos de primas. Queria que fossem com ela até a casa, ajudassem-na a fazer as malas e a catar suas coisas e as da criança. Quando M. voltou para casa naquela noite, não encontrou mulher, filho, nada. Apenas um bilhete no qual L. avisava que o estava deixando e pedia que ele não a procurasse mais, a não ser que aceitasse se tratar, porque o que ele tinha só podia ser doença.

M. ainda tentou procurá-la para conversarem. Queria dizer o quanto a amava, que não entendia aquelas súbitas perdas de controle emocional, que estava disposto a mudar por amor a ela e ao filho. Ela, ainda assustada e com medo, não quis ceder. Ele então fechou a casinha onde moraram por tão pouco tempo e voltou para a casa dos pais e das irmãs. Só que lá as coisas não melhoraram. Revoltado com o abandono da esposa, M. dava ataques cada vez mais frequentes. Até que brigou no serviço e perdeu o emprego, o que levou suas irmãs a convencerem os pais a chamar um médico especialista. E foi então que o psiquiatra diagnosticou esquizofrenia. Remédios não continham mais os surtos de M. Ele teve que ser internado no manicômio de Barbacena, onde veio a passar décadas de sua vida, até morrer de velhice aos cinquenta e poucos anos.

L. passou uns tempos na casa dos tios. Mas não queria ficar por perto, sujeita às abordagens de M. Decidiu então mudar-se para a capital. Lá, com um dinheirinho que seu pai lhe mandava regularmente, trabalhou uns tempos de professora primária enquanto uma empregada de confiança a ajudava a cuidar do filhinho. Antenada, descobriu que podia fazer concurso público e, inteligente e esforçada, logo passou num para o governo. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como servidora federal. Certa época, quando os tios e primos já moravam todos em Belo Horizonte, pediu transferência para uma repartição na capital de Minas. Sentia-se sozinha no Rio, ela e o filho.

O menino cresceu bonito e inteligente, mas L. sempre temia que o gene ruim do marido vingasse no filho. Aparentemente, era um temor infundado. Ele era alegre, sem variações de humor. Mas ela sabia que a falta do pai, ou mesmo de uma figura masculina de referência, ainda se faria sentir. E foi o que sucedeu no início dos anos 60, quando o rapazote conheceu o pessoal da organização de direita que agitava bandeiras em defesa da pátria, da família, da religião e da propriedade privada, em oposição aos movimentos de esquerda que também pipocavam na época. Aos quinze anos, o filho seguiu caminho com os novos amigos da organização. Por mais que ela pedisse que ele não a deixasse só, não houve meio. Ele se sentia com uma missão, e apto a encará-la. E foi em frente.

L. não era de lamúrias nem chorumelas. Achou ruim – péssimo – o filho se emancipar tão cedo, mas manteve sua vida de funcionária pública zelosa. Foi por essa ocasião que o governo começou a oferecer vantagens a quem se interessasse em mudar para Brasília, onde as oportunidades de emprego, os cargos e as comissões, pululavam. Sem nada a perder ou a deixar pra trás, L. aceitou a transferência. O salário era tão bom que lhe permitiu, pouco depois, aposentar-se no teto da carreira e desfrutar de boa remuneração. Só não passava a inquietação. L. então, depois de viver mais de dez anos na nova capital federal, resolveu morar em São Paulo uns tempos, para ficar mais perto do filho – nessas alturas, ele, com seu brilho e carisma, já era dirigente da organização da qual fazia parte. Na capital paulista L. se sentiu mais só do que nunca. O filho não tinha tempo para ela. Fora visitá-la com mais frequência quando ela morava em Brasília ou em Belo Horizonte do que nos tempos em que partilhou com ele a mesma cidade.

Daí que L., velha e independente, decidiu que moraria onde lhe desse na telha. Voltou para Belo Horizonte, para perto das primas e dos filhos das primas, entre os quais tinha afilhados. Quando soube da morte de M. no sanatório, voltou mais uma vez para Brasília, mas o clima não lhe agradava. Experimentou o Sul de Minas, o frio a incomodou. Por fim, adotou o Rio, a cidade mais bela e agradável entre as que conheceu e pelas quais arrastou sua solidão.


L. ficou velha e surda. Era lúcida, gostava de ler os jornais e ver o noticiário na televisão. Mas, à medida que perdia a audição, menos comunicação tinha com o mundo. Se já não colecionava amigas nem relações, sem a audição acabava por se isolar mais e mais. Por causa da decadência física, achou melhor trocar o apartamentinho onde morava por uma casa de repouso, uma instituição que cuidava de idosos. O custo era alto, mas o filho a ajudava a se manter, com assistência de enfermeira,

nutricionista, cuidadores profissionais. E o lugar compensava tudo: no alto de uma pedreira, em Copacabana, entre a favela e a parte chique do bairro mais famoso da capital fluminense, com a vista ampla da Baía de Guanabara e do vasto oceano de cor indecifrável. Foi ali que L. morreu, sozinha, sem ligação com o mundo, sem dizer adeus a ninguém e sem ouvir de alguém uma palavra.

Clara Arreguy

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Liberdade artística x mercado – a velha discussão...

 

Volta e meia, sou abordado por escritores iniciantes, em palestras ou por e-mail, perguntando-me sobre os limites da assim chamada "liberdade literária".

Colocando de outra forma: quanto de liberdade podemos usar quando produzindo um texto e quanto precisamos nos ater a regras? E que regras são essas, afinal? Diálogo precisa começar com travessão? Posso escrever com erros de português se estiver representando um personagem que fala ou escreve errado? Posso escrever um livro da mesma forma que falo? E da mesma forma como escrevo em um blog?

A pergunta, obviamente, é capciosa, e a resposta ainda mais.

No meu entendimento, teoricamente você pode fazer o que quiser quando está escrevendo. 

Digo teoricamente, assim, em itálico, porque há pelo menos dois grupos importantes a considerar:

·         Seus leitores. Se você quer agradá-los, precisa escrever algo que seja adequado ao seu público-alvo. Quem compra um livro não espera (por enquanto) encontrar um diálogo do tipo "Vc naum gosta dela? kkkkkk!".

·         As editoras. Se você está pensando em vender seu trabalho para uma editora, deve considerar que um texto com erros propositais, com experimentalismos ou qualquer coisa que torne a leitura exageradamente difícil, é pouco recomendado, especialmente para novos escritores.

Isso quer dizer que você precisará "sacrificar sua arte em prol do comércio"?

Não.  Apenas significa que você precisará, como todo profissional, estudar, treinar, aperfeiçoar sua capacidade de se expressar dentro da sua arte – a escrita – para conseguir, de forma mais precisa, mais completa, mostrar o que deseja mostrar – sem vícios e erros que aparecem com a desculpa da "liberdade artística".

Obviamente, quanto mais famoso você for, mais liberdade terá para escrever do jeito que quiser – mas enquanto não chegar lá, provavelmente precisará ser bem mais conservador. Lembre-se que Picasso (foto), no início da carreira, era um exímio retratista, e só depois da fama mostrou ao mundo a arte do jeito que ele realmente desejava mostrar!

É como dizia o apóstolo Paulo: "Tudo posso, mas nem tudo me convém"...


Alexandre Lobão