Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Asas



O champanhe estourou com um som seco, quase um tiro. Roberto Braga, o chefe da Unidade, sorriu sem convicção, encheu a primeira taça e a levantou na direção de todos.

- À nossa aposentadoria!

Os investigadores levantaram suas taças ao mesmo tempo, lentamente, como em uma coreografia melancólica.

A comemoração, se é que poderíamos chamá-la assim, continuou com um burburinho de vozes, quase todas soando desagradadas. Aproximei-me do chefe.

- E aí, Braga? Quer dizer que agora não tem mais volta, mesmo?

Ele levantou as sobrancelhas e fez um gesto de desalento com as mãos.

- Quem me dera, Martelli. O DT-Eye foi utilizado em todos os casos no último ano e provou que é, no mínimo, tão bom quanto nós. E muito mais rápido. A resolução já foi assinada pelo governador; temos um mês para acompanhar os últimos casos, empacotar nossas coisas e fechar o barraco.

- Todo mundo vai ser dispensado?

- Exceto os operadores do sistema, é claro.

Concordei com um aceno de cabeça, levantei o drinque em cumprimento e circulei pela festa com um gosto amargo na boca. Não sabia o que estava fazendo ali, mas tampouco me animei a retornar para casa. Lembranças demais.

Arrastei os passos até o outro lado do salão e joguei-me em minha cadeira, ficando escondido pelas paredes de meia altura do cubículo de trabalho. Era difícil acreditar que, em breve, minha carreira estaria terminada. Vinte e cinco anos de serviço, e pelo menos outros vinte e cinco anos produtivos pela frente... Era muito cedo para qualquer um se aposentar!

Com o peito ainda pesado puxei a lâmina, que estava debaixo de uma pilha de bugigangas, e pressionei no botão embutido na lateral. O vidro ficou leitoso, apresentando os ícones padrão da SecCorp, e cliquei quase por instinto no ícone do DT-Eye.

Na lista de “casos sem acompanhamento” havia um caso, ocorrido às 18h30 e resolvido pelo sistema às 20h30, quando chegaram os resultados da autópsia, menos de um minuto atrás. Segurei o dedo sobre o caso por alguns momentos, e o menu de contexto apareceu.

Acompanhar”.

Automaticamente, o DT-Eye mostrou o andamento do caso em formato de uma história de quadrinhos animados. Uma morte em cinco quadros.

18h00 – Renata Luzes, 29 anos, sai do prédio da Omni NanoCorp, onde trabalhava como nanoengenheira. O vídeo mostrava uma garota que não aparentava mais de 18 anos, andando apressada e com um ar perturbado. O endereço da empresa flutuava sobre a imagem do prédio.

18h20 – A vítima entra no centro de vendas Union SkyMall, claramente perturbada. “Claramente perturbada”. Nunca me acostumaria com as avaliações emocionais feitas pelo DT-Eye. O vídeo mostrava a garota gesticulando e falando sozinha. Cliquei no endereço que aparecia sobre o prédio e selecionei “rota para o quadro anterior”. Dois quarteirões. A vítima deve ter percorrido o espaço a pé, e pela demora deveria estar relutante.

18h25 – A vítima chega ao terraço panorâmico do centro de vendas, ainda mais perturbada. O vídeo mostrava a garota ainda falando, como se discutisse com alguém. Cliquei no ícone de texto e a transcrição do seu monólogo apareceu, um conjunto de argumentos soltos, como se ela estivesse respondendo a uma voz inexistente que, aparentemente, a induzia a fazer algo que não queria.

18h30 – A vítima salta do terraço panorâmico, atingindo o solo 3,5 segundos depois. Dois vídeos dividiam o quadro, um mostrando a garota subindo em uma cesta de reciclagem para atingir o topo da parede de vidro, e outro de longe, a queda vista por alguma câmera de rua.

20h30 – Conclusão do inquérito: Suicídio induzido por comportamento esquizofrênico. Morte por traumatismos múltiplos. Ausência de drogas no sangue e de histórico pessoal ou familiar de esquizofrenia indica provável EISIV. Caso resolvido.

E.I.S.I.V. Esquizofrenia Induzida por Superexposição à Imersão Virtual. Era cada vez mais comum ver cérebros viciados em I.V. falharem ao retornar à realidade, mas algo naquele caso parecia não se encaixar. Olhei novamente o último quadro, uma colagem de fotos do corpo na marquise do SkyMall e da autópsia. Um corpo magro, ligeiramente bronzeado, cabelos negros e curtos.

Balancei a cabeça, negativamente. Talvez eu apenas estivesse incomodado pelas grandes asas tatuadas nas suas costas, que evocavam lembranças que eu preferia manter enterradas.

Desliguei a lâmina e a coloquei no local devido, presa à parede do meu cubículo, talvez pela primeira vez desde que assumira aquele espaço. Suspirei. Teria um mês para arrumar aquela bagunça, mas hoje à noite eu precisava de algo mais forte que champanhe.

*          *          *

Saindo discretamente pelos fundos do salão, fugi para o bar em frente à SecCorp. Algumas caras conhecidas, incluindo alguns colegas da Unidade, se voltaram à minha entrada, mas segui para um canto escuro e cliquei no cardápio, pedindo um uísque duplo com gelo.

A aposentadoria da SecCorp seria suficiente para me manter, com alguma folga para eventuais luxos. Não que eu os tivesse. Mas o que me incomodava era o sentimento de inutilidade, a ideia de que metade de minha vida tinha sido aplicada em uma cruzada dispensável, substituível por uma I.A. provavelmente programada por outras I.A.s. Se eu ainda tivesse uma família, quem sabe...

Afoguei esta linha de pensamentos terminando o copo em um só gole. Uma careta, um clique, mais um uísque.

A luz direcionada sobre a mesa iluminou o novo copo e projetou uma sombra alaranjada sobre o tampo claro. Olhei por alguns instantes para a bebida, tentando descobrir o que estava errado. Só então percebi que o uísque estava mais escuro, eu havia esquecido de selecionar o gelo no pedido...

De repente, ficou claro o que não se encaixava naquele caso de suicídio. Pressionei o polegar no canto do menu confirmando o pagamento e saí de volta à SecCorp sem tocar na segunda bebida.

*          *          *

De volta ao cubículo, recarreguei o caso e cliquei no último quadro. O quadro se expandiu e tomou toda a superfície da lâmina, trazendo dados técnicos da autópsia na barra à esquerda e as fotos à direita. Deslizei diversas fotos para o lado até descobrir uma que mostrava a vítima, de costas.

Aproximei a foto, e verifiquei que minhas suspeitas estavam certas: o que me incomodara antes é que a vítima, Renata Luzes, não tinha a cor certa. As asas em suas costas eram claras, mas os braços e a parte da pele em volta do pescoço eram mais escuros, indicando que ela saía de casa com frequência suficiente para se bronzear, o que absolutamente não combinava com o perfil dos viciados em I.V.

Além disso, executando o vídeo a partir do momento da foto, confirmei que a tatuagem não brilhava nem se movia. Definitivamente, uma tatuagem retrô não combinava com um tecnoviciado.

“Evidências circunstanciais, se tivermos a boa vontade de chamar isso de evidências” – eu podia até imaginar o Braga me sacaneando – “deixe essa coisa de lado, para que estragar a festa de sua promissora aposentadoria com um pouco de trabalho?”

Ri da ironia e comecei a me aprofundar nos detalhes do caso. A autópsia revelava níveis maiores que o comum de bismuto, grapheno e germânio no sangue. Restos de nanos? Bem, isso poderia ser comum se ela tivesse sofrido alguma nanocirurgia recentemente, o que me levou ao seu histórico médico. Como ele não indicava nenhuma nanocirurgia, solicitei que o scanner da autópsia realizasse uma análise mais específica, procurando por sinais de nanoalterações realizadas recentemente.

O modelo 3D mostrou o corpo em azul, com pontos vermelhos nos dois olhos e ambos os ouvidos. Novamente no histórico médico, não localizei nenhum tipo de deficiência visual ou auditiva.

Seguindo a pista, ainda que tênue, solicitei comparação de imagens do rosto da garota de três meses antes (mais do que isso e os sinais dos nanos já teriam se dispersado) com as atuais. Virei os rostos em 3D de um lado para outro, aproximei as imagens, mas o resultado foi nulo: tanto olhos quanto orelhas não haviam sofrido nenhuma alteração cosmética.

Por que diabos, então, ela teria passado por uma cirurgia? Registrei o comentário e retornei à tela principal.

Comecei a me aprofundar em suas atividades. Nanoengenheira, ela trabalhava na divisão de pesquisas da Omni NanoCorp. Teria ela sido cobaia de algum tipo de testes? Isso não fazia sentido.

Selecionei então os registros de segurança da empresa dos últimos três meses, e procurei todas as ocorrências associadas à vítima.

Mais algumas filtragens e sobraram cerca de vinte operações de acesso negado. Renata havia tentado acessar o conteúdo de outra área da empresa, por diversas vezes e sem sucesso. No registro de sua última tentativa, verifiquei que ela havia vencido as duas barreiras virtuais de isolamento, mas não conseguira listar ou copiar nenhum conteúdo devido ao protocolo de segurança.

Recuperei os logs de acesso posteriores, e verifiquei que em nenhum momento ela conseguira acesso total às informações que procurava. Pouco depois das tentativas, seu login mudara, indicando que ela fora transferida para outro departamento.

Espionagem industrial? Aos poucos, um motivo para crises de consciência, ou mesmo para um assassinato, começava a se delinear. Mas ainda era muito pouco. Eu precisava saber se o segredo que Renata tentara acessar valia o suficiente para que desejassem silenciar alguém que chegara perto demais de descobri-lo.

Registrei os dados e meus comentários e segui adiante.

Meu próximo passo foi entrar na rede privada da Omni e tentar acessar a área segura.

Acesso negado.

Olhei por cima do cubículo e conferi que alguns colegas continuavam na festa de aposentadoria da Unidade, mas nenhum dava atenção à área dos cubículos de trabalho onde eu estava.

Entrei então com o login privilegiado da SecCorp, o que – teoricamente – apenas o chefe da Unidade poderia fazer.

Acesso negado.

Agora eu finalmente tinha uma evidência real de que algo estava errado na Omni NanoCorp. Por lei, toda informação deveria estar disponível para os logins privilegiados das Corporações de Segurança, e se eles tinham algo a esconder, talvez esse algo fosse grande o suficiente para que desejassem silenciar qualquer curioso.

Não que isso fosse um problema para mim.

Acessei o DT-Eye e solicitei a abertura de um novo processo de investigação, com quebra do sigilo indevido que infringia a lei da livre informação. Com o endereço registrado, o sistema levou alguns milésimos de segundo para verificar que a denúncia procedia, e menos de dez segundos para, usando o poder de computação em rede do Governo, conseguir o acesso às informações.

Com certeza, em algum lugar da Omni NanoCorp os alarmes devem ter soado, e técnicos já deveriam estar correndo para descobrir o que provocara o vazamento de informações. Mas era tarde demais: em minha lâmina, listas de projetos de nanos, modelos e relatórios eram rapidamente analisados, agrupados por assuntos e salvos no servidor da SecCorp como evidências.

No centro da nuvem de informações, resultante da análise dos documentos, duas palavras se destacavam: nanoconstructos sensoativos.

Um frio percorreu minha espinha, ao lembrar da onda de suicídios coletivos quinze anos antes, provocada por nanoconstructos que injetavam propagandas diretamente nos nervos óticos e auditivos e que culminou na proibição em todo globo de nanos que alterassem os sentidos.

Logo abaixo, na nuvem de palavras e imagens, saltavam aos olhos as palavras militar e restrito. Clicando em “militar” para torná-lo centro de uma nova nuvem, apareceram não apenas os nomes de duas agências de inteligência do governo, mas também uma dúzia de outros nomes, alguns de agências similares em outros países, e outros totalmente desconhecidos para mim. Com certeza a sujeira na Omni NanoCorp era grande.

Como a invasão aos dados havia sido coordenada pelo DT-Eye, a abertura do processo ocorreu automaticamente, e com uma confirmação liberei a expedição das ordens de restrição de bens e de acesso a informações para todos os envolvidos naquele projeto.

Mas ainda não era isso que eu estava procurando.

Retornei ao caso de Renata Luzes e vinculei o processo de investigação de dados recém-aberto como evidência, incluindo meus comentários.

Apesar de as evidências levarem a uma única conclusão, faltava ainda uma prova não circunstancial de que o suicídio dela havia sido induzido pela empresa.

Da lâmina, fiz nova solicitação ao scanner de autópsia, desta vez para realizar uma pesquisa por nanos remanescentes. Normalmente os nanos se autodestruíam automaticamente após seu uso, e seus restos eram eliminados naturalmente pelo corpo. No entanto, considerando que eram usados milhares, por vezes milhões de nanos em uma única operação, era comum que alguns apresentassem defeito e ficassem simplesmente inativos, presos a algum tecido ou vagando pelo corpo.

Dez minutos depois, o scanner havia detectado três nanos inativos nos olhos e sete nos ouvidos, o suficiente para uma engenharia reversa. Mais quinze minutos, e a análise microscópica de sua estrutura revelava a frequência que estavam pré-programados para responder.

“Peguei vocês, seus filhos da mãe!”

Registrei os nanos e a frequência como evidências no caso de Renata e retornei à tela inicial da lâmina, entrando agora no SAT – Sistema de Análise de Transmissões. Indiquei a localização do SkyMall, a hora da morte e a frequência a ser analisada.

O sistema demorou alguns instantes para recuperar os registros das transmissões das bases do SkyMall, e pouco mais que isso para decodificá-las.

Abri novamente o caso de Renata e mandei sobrepor as mensagens e imagens gravadas ao vídeo do terraço panorâmico, onde ela parecia conversar sozinha. O diálogo se completou perfeitamente, com a imagem de uma senhora, ligeiramente fora de foco e vista de um ângulo diferente do gravado pela câmera, conversando com a pobre garota.

“Você nunca prestou para nada, mesmo!”

“Mas, mãe...”

“Não tem mas nem meio mas. Você arruinou minha vida, abandonei tudo o que eu queria ser por você, e no fim, o que você faz? Me deixa para morrer abandonada!”

“Mãe, você nunca disse que se sentia solitária!”

“E é preciso dizer? Morri sozinha em casa, sem alguém até mesmo para segurar minha mão!”

“Mãe, para com isso! Eu não quero morrer!”

“Eu também não queria, querida. Mas agora podemos ficar juntas. Venha comigo e prometo cuidar de você...”

A raiva pintou de vermelho minha visão, e parei a execução do vídeo. Os animais haviam atormentado a garota até que ela se matasse, usando traumas e lembranças da mãe dela!

Olhei para aquele rosto de menina, congelado em um momento de desespero em um dos quadros do processo. Quanto tempo será que ela sofreu aquela tortura psicológica, até finalmente quebrar?

Vinte e cinco anos de trabalho, e ainda assim precisei respirar fundo para engolir a revolta com aquele caso.

Fechei o vídeo superposto e salvei-o como mais uma evidência.

Retornei à tela inicial do DT-Eye. Segurei o dedo sobre o caso de Renata e no menu de contexto que apareceu selecionei “Corrigir conclusão”.

Tem certeza?

Sim. Era a primeira correção de um veredicto do sistema, desde seu lançamento, um ano atrás.

No espaço para o “Nova conclusão” preenchi “Homicídio”.

Para o campo de “Provável culpado” arrastei os nomes dos executivos do organograma da Omni NanoCorp, desde o presidente até o chefe do departamento que conduzia a pesquisa com nanos sensoativos.

Confirma múltiplos culpados?”

Sim.

Adicionei os registros de provas e evidências que havia coletado e mandei o sistema validar o novo resultado das investigações.

O DT-Eye analisou as evidências, cruzou com as informações do outro processo que eu abrira e confirmou minhas conclusões.

Nova conclusão aprovada. Acusação de homicídio adicionada às acusações de infrações informacionais e de produção ilegal de constructos sensoativos.

Pressionei o botão de “ok” e, para minha surpresa, mais uma tela apareceu, com um vídeo do chefe do departamento de desenvolvimento de sistemas.

Como forma de melhorar o DT-Eye, gostaríamos de seu depoimento sobre a investigação realizada, respondendo a uma questão: O que o levou a discordar da conclusão do sistema e aprofundar as investigações? Pressione ok para iniciar a gravação.

Melhorar o sistema, depois de ele acabar com nossa Unidade?

Pressionei “Ok” e mostrei meu melhor sorriso irônico, olhando direto para o centro da lâmina.

“Pode chamar de instinto ou pode chamar de palpite. Quando vocês conseguirem programar isso em uma I.A., aí poderão nos dispensar com a consciência mais tranquila. Até lá, boa sorte.”

Apertei o botão novamente para finalizar a gravação. Olhei para o relógio em meu cubículo: 22h15.

O DT-Eye demorara duas horas para resolver o caso.

Eu demorei quinze minutos a menos para concluir a investigação que não apenas corrigiu sua conclusão e fez justiça à pobre menina de asas, mas também minou a credibilidade que o sistema levara um ano para construir.

Com um sorriso lembrei que, além disso, ainda tivera tempo para um uísque.

Nada mal para um investigador prestes a se aposentar.



Alexandre Lobão

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Despertador



Acordou suado, sobressaltado, olhou para os despertador: 5:23. De novo, mais uma vez, era a quinta noite seguida que acordava de supetão às 5:23 horas. Não se lembrava com que tinha sonhado, mas permanecia a sensação de que toda noite era o mesmo sonho. Restava a esperança que não demoraria cerca de uma hora para dormir, como acontecera nas noites anteriores. Virou para o lado e olhou para a cortina de listras amarelas. Mergulhou na lembrança do dia em que a cortina foi comprada, faz muito tempo, tudo mudou... nada mudou...

Maria Helena insistia que ele devia ter cortinas: “Uma casa sem cortinas não é uma casa!”. Cortinas, pensava, só servem para obstruir a entrada da luz, mas como esse apartamento já tem persianas, para quê, meu Deus, para quê? Mas gostava de Maria Helena e, afinal, aquele apartamento era quase casa dela. Ela o ajudara a procurar, escolher, mobiliar, e passava muitas noites por lá. “Amanhã, na hora do almoço, vamos comprar as cortinas”. Foram diretamente a uma loja que Maria Helena conhecia e ela escolheu as cortinas, enquanto ele concordava distraidamente. No final de semana, depois de instalarem as cortinas, Maria Helena não se cansava de dar mostras de satisfação com a “verdadeira casa”.

Acordou de novo, ainda suado, olhou para o relógio: 5:35. Começou a pensar nas coisas que o aguardavam no escritório, precisava acabar dois relatórios e deveria rever um projeto, tudo naquela manhã, pois à tarde haveria mais uma reunião. Como gostam de reuniões, esses caras... Na semana passada, inventaram reunião todos os dias... Lembrou-se de seus primeiros dias nesse trabalho, sentia-se tão adulto: reuniões, datas limite, responsabilidades, coisas de gente grande... Quanta inocência perdida!

Virou para o outro lado, a claridade começava a incomodar, olhou mais uma vez para o despertador: 5:57. Cortinas e persianas, de que adianta se nunca se lembrava de fechar... Antigamente, nem ligava para claridade, dormia de qualquer jeito. Na casa dos pais, quando era criança, havia apenas uma cortina fininha, mas o sono, esse era espesso, impenetrável e tão agradável. Não havia despertador, era a mãe que vinha chamá-lo três, quatro vezes, se fosse preciso. Não precisava se preocupar com a hora, a mãe estaria lá, assegurando que ele estaria de pé na hora certa, vestido, penteado, de café tomado, pronto para a escola. Ah! Havia os dias que pegavam carona com o vizinho, um carro bem velho e um motorista que insistia em andar sempre no acostamento. E a filha do vizinho... tão branquinha, tão nervosinha... casou com um sueco e mudou-se para lá. A cor da pele combina...

Será que perdeu a hora? Senta-se na cama, assustado, pisca os olhos e olha para o despertador: 6:08. Puxa, como o tempo demora a passar... Devo me levantar? Posso tomar um café, comer alguma coisa... Ah! Os cafés da manhã de sábado com Maria Helena, seu cabelo solto, a camiseta larga, a omelete com tomates, a vontade de que isso durasse para sempre ou que acabasse já e Maria Helena sumisse... A mãe dela nunca gostou dele, vivia dizendo que ela merecia coisa melhor, que coisa melhor? Maria Helena ria...

Virou de costas para a cortina mais uma vez e olhou, de novo, o relógio: 6:12. Pensou, outra vez, no escritório. Se não houvesse tantos relatórios, tantas reuniões, talvez fosse um trabalho agradável. Mas o que sobraria se não houvesse relatórios e reuniões? Sentiu uma pontinha de tédio, todo dia, quando chegava no trabalho, tinha a impressão de que não produzia nada, que no fim das contas todo seu trabalho era inútil. Suspirou desanimado, se eu não fizer isso, vou fazer o quê? Poderia tentar mudar de trabalho, mas para que, se todos eram assim... Poderia tentar fazer outra coisa... mas o quê?

O pai sempre dizia: “Profissão boa é aquela que dá para mudar de profissão sempre”. E fazia a apologia da advocacia: “Um dia família, outro penal, depois internacional, qualquer coisa é Direito, cansou de uma, toca a mudar para outra”. Mas quem vai lá escutar os pais a essa altura da vida? A mãe, por outro lado, em sua infinita adaptabilidade, dizia: “A gente gosta do que faz, se resolvo fazer algo, vou gostar”. Ele, nem prático como o pai, nem adaptável como a mãe, tinha escolhido o que lhe parecia interessante no momento. Mas o momento passou...

Agora não conseguia mais dormir. Quando pensava nessas coisas, trabalho, profissão, o que fazer da vida, vinha sempre um sentimento de exasperação, uma vontade de não-ser ou de ser outro. Olhou, mais uma vez, para o relógio: 6:31. Quando era criança, tinha a sensação de que um dia seria descoberto. Alguém o descobriria e diria: “Você é grande, você é genial!”, em que não sabia. Os anos passaram, a vida passou, e ninguém o descobriu, nem ele mesmo. Mas essa sensação ainda persistia vagamente...

Levantou, foi ao banheiro e hesitou entre voltar para a cama e tomar um café. Enfiou-se, de volta, debaixo dos cobertores e suspirou satisfeito, ainda são 6:45, dá para dormir bastante ainda... Sempre gostara de dormir. A noite era como uma bênção, o dia era para se preocupar, pensar, decidir, fazer, a noite, não. A noite convidava a sonhar, a esquecer... Boa deve ser a vida nos polos, três meses só de noite...

Acordou sobressaltado, com um barulho estridente, o despertador, o despertador! 7:00 horas. Desligou o despertador, sentou-se na cama, meu Deus, imagine três meses seguidos de dia...


Nurit Bensusan

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O prazer de divulgar livros

Foto: Marcos Campos


Um escritor escreve um texto, envia-o para uma editora e, eventualmente, o texto vira livro.

São vários os tipos de livros: infantis, técnicos, religiosos, de literatura, de arte. Os infantis e os infanto-juvenis são vendidos em livrarias de interesse geral ou em livrarias escolares. Existem poucas especializadas nesse segmento literário no Brasil.

Um bom caminho para esses livros serem conhecidos e disseminados entre as crianças e os adolescentes são as bibliotecas e as escolas.

A Editora Projeto é especializada nesse tipo maravilhoso de livro. Escolhe com muito critério os textos que publica e os ilustradores que dão toda a narrativa imagética à obra.

A Arco-Iris Distribuidora de Livros, de Brasília, tem a honra de distribuir o produto editorial da Projeto há anos.

Sou Iris Borges, proprietária da Arco-Iris, e quero contar como divulgamos os livros nesta terra encantadora, onde vivo há cerca de 40 anos.

Temos uma equipe de três divulgadores: o João, a Dina e a Rose, sob a supervisão do primeiro.

Dividimos o Distrito Federal em regiões e cada um dos divulgadores tem a sua carteira de clientes. Visitam as escolas o ano todo e criam vínculos com os professores e coordenadores. Assim, vão conhecendo a maneira como as escolas trabalham a literatura infanto-juvenil. Na fase de escolha dos livros a serem adotados, o catálogo é um instrumento importantíssimo.

A experiência dos divulgadores é fundamental, nessa hora, para ajudar o professor a escolher os livros que deseja adotar ou com os quais pretende compor o seu projeto de leitura. Esse processo é complexo e demorado.

Após a escolha, é imprescindível o acompanhamento dos divulgadores até o final do processo: descobrir as livrarias da redondeza que atendem aquela escola e, então, disponibilizar os livros para elas.

Cabe à Arco-Iris Distribuidora acompanhar todo esse caminho, inclusive internamente, registrando a adoção, orientando o profissional encarregado dos pedidos para ser ágil, até fazer os livros chegarem às mãos dos pais e, por fim, às dos leitores.

Realizamos muitos eventos, como feiras de livros e festas literárias, no intuito de dar visibilidade a livros, autores e ilustradores.

Tenho certeza de que, para fazer esse trabalho, é preciso gostar de livros, de leitura e da movimentação que esse trabalho gera. Quando se gosta, então, cada dia é um novo dia, cheio de desafios, novidades, muitas dificuldades e puro encantamento.

Um divulgador tem de ser "descolado". Se ele está com alguma dificuldade, ao chegar à escola, precisa encontrar um jeito de demonstrar que está tudo bem, sempre atento à aparência e a uma postura educada e profissional. Precisa controlar seu humor e mantê-lo estável, a despeito de qualquer situação adversa.

É fundamental que os divulgadores demonstrem interesse, procurando, de fato, ajudar os professores a encontrar os livros de que precisam. Eles devem estar PRESENTES no que fazem. Somente quem vive essa experiência sabe “da dor e da delícia" de ser um divulgador.

É maravilhoso ver o brilho nos olhos de um divulgador quando ele recebe um livro novo! E quando conhece um autor que ele admira?

Em parceria com a Projeto, já recebemos várias visitas de escritores publicados pela editora: André Neves, Rosinha Campos, Hermes Bernardi Junior e Léo Cunha, que vieram enriquecer a Festa Literária de Pirenópolis (Flipiri), que acontece há cinco anos e é organizada pela Arco-Iris e pelo Instituto Casa de Autores, do qual sou presidente.

Anna Cláudia Ramos esteve na Festa Literária do DF (FLIDF), organizada pelo Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do DF (Sinepe-DF), sob minha curadoria.

Em Brasília, já recebemos, mais de uma vez, a visita do Marcelo Carneiro, inclusive em conjunto com a Secretaria de Educação do DF, em agradável evento no Museu da República.

Os vínculos com a Projeto foram se estreitando de tal forma que ultrapassaram os limites do profissional. Há alguns anos, um cunhado querido precisou de um transplante que só poderia ser feito em Porto Alegre. Foi então que conhecemos o lado solidário, generoso e amigo de Annete Baldi.

Obrigada, Annete, por nos acolher e ajudar em sua cidade e, sobretudo, por sua dedicação à causa do livro e da leitura. Você é uma fonte de inspiração para mim e, tenho certeza, para muitos!


Iris Borges

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

As férias acabaram, mas outras vêm aí!



Sim, as férias acabaram... que pena! Mas ainda bem que vêm outras por aí. Daqui a pouco, as férias escolares estarão de volta e muitos pais aproveitarão para curtir o seu merecido descanso também.

Imagino que, por esses dias, os mais previdentes estejam planejando onde estas férias acontecerão, talvez já tenham comprado as passagens, realizado as reservas para hospedagem e programado os passeios que farão. Isso é bom. Parabéns! Agora faço uma pergunta: já calcularam os recursos financeiros para isso?

Os profissionais liberais, com certeza, se preocuparam com a pergunta, mas aposto que os assalariados responderam que não precisam se preocupar, pois vão usar o 13º salário e os abonos de férias para isso. Ótimo. Profissionais liberais e assalariados, lembrem-se de que já existem em nome de vocês, além da viagem de férias, contas que vocês talvez não estejam se lembrando, mas que estão em seus nomes há muito tempo: festa e presentes de Natal; festa de Réveillon; revisão e seguro do carro; matrícula, uniforme e material escolar; IPTU; IPVA e, fechando o ciclo, em abril do ano nem tão novo mais, o pagamento do imposto de renda. Ufa! Quanta despesa...

Peço desculpas por tê-los assustado e tirado vocês dos devaneios que as últimas férias trouxeram. E para me redimir, quero dar uma boa notícia: todos esses gastos que citei podem ser planejados. Sim, eles não são “gastos extras de fim e início de ano”, como muita gente insiste em chamá-los. São gastos normais, perfeitamente planejáveis, pois todos sabem que eles ocorrem todos os anos.

Infelizmente, a maioria das pessoas não faz reserva financeira para realizá-los pois conta com o pobre coitado do 13º salário para isso. Esquecem que o 13º é usado, normalmente, para quitar dívidas acumuladas ao longo do ano, causadas pelas mesmas despesas citadas; portanto, ele é insuficiente. Assim, vocês acabam por custear as despesas futuras em “módicas prestações” que, em alguns casos, duram até a nova enxurrada de gastos do ano seguinte, criando um processo que se retroalimenta, e assim raramente sobra dinheiro para investir.

Como mudar esse quadro?

A minha sugestão é trocar a atitude de “investir o que sobra” para calcular e separar o que se precisa "investir e gastar o que sobrar”, pagando primeiro a vocês mesmos. E isso é muito simples e prazeroso.

Voltemos às férias: verifiquem o custo da hospedagem e do transporte, seja ele qual for; calcule o valor da alimentação, incluindo os lanchinhos e sorvetes; os preços dos passeios, das lembrancinhas que queiram trazer para alguém e tudo o que vocês lembrarem que resultem em custos. Somem tudo. O resultado é o valor necessário para as férias.

Em seguida, calculem o número de meses que faltam até a data da viagem. Verifiquem a rentabilidade média mensal de algum produto financeiro que atenda a seus critérios de prazos e riscos e, com esses dados, calculem quanto vocês precisam investir por mês para atingir o valor calculado. Caso tenham dificuldades com as contas, existem diversos planejadores financeiros online disponíveis na internet. Indico o Librattum (www.librattum.com.br). Por fim, verifiquem se o valor mensal encontrado está dentro das suas reais possibilidades e, se não estiver, façam ajustes, até que o valor se encaixe em seu orçamento. Invistam esse valor mensalmente e depois curtam as férias com dinheiro no bolso.

Ao retornar das férias, refaçam os planos para a próxima. Já que aprenderam e estarão com a “mão na massa”, façam a mesma coisa para todas as demais despesas futuras e os sonhos, incluindo a tão desejada independência financeira para a aposentadoria. Verifiquem se os planos estão de acordo com as suas reais possibilidades. Se não estiverem, façam ajustes, até que eles se encaixem em seu orçamento, que deve ser revisto frequentemente.

Somem os valores encontrados e invistam regularmente para atingir os objetivos traçados. Com isso, vocês terão o dinheiro para pagar tudo à vista, tendo liberdade financeira que a vida sem prestações traz, permitindo, inclusive, mudanças de planos no momento que desejarem ou necessitarem. Boa sorte!


Rogério Olegário do Carmo

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

12 de outubro – Dia Nacional da Leitura


Todo dia é dia de ler, mas temos um dia dedicado à leitura. Nada de mais, quando se considera que a leitura é uma prática que, apesar de ter sofrido grandes mudanças desde os primórdios até a atualidade, transformou-se e transformou a sociedade.

 Mas, saindo do plano histórico-didático e sem levar em consideração o atual estágio em que se encontra a leitura no Brasil, é importante que se entenda que essa atividade deve ter como motivação primordial  o prazer.

É sabido que vários são os objetivos da leitura, mas, entre eles, salta aos olhos que “ler por prazer” é o que transforma o indivíduo em leitor. Nada se compara à aventura de circular entre livros, de poder escolher um deles ou, quem sabe, ser escolhido por eles, achar um cantinho, seja em casa, na escola, na biblioteca ou na livraria, e empreender uma viagem paralela a outros mundos.

E o que dizer da paixão pelos livros, do encantamento pelos personagens que circulam  pelos reinos da fantasia ou da realidade? Quando o amor pelos livros vem desde a infância, ele vem num crescendo e se transforma em paixão incurável. E o livro passa a ser o interlocutor permanente, o amigo inseparável.

Para Adélia Prado, “a vida está pulsando ali, o livro faz parte da casa, da comida, da experiência, da maternidade, do cotidiano”. Com base nessa declaração, pode-se afirmar que não há idade para a leitura. O importante é que ela seja cultivada desde a primeira infância, pois, como processo contínuo, perdurará por toda a vida, não importando se quem lê é criança, jovem, adulto ou idoso.

E, falando de infância, eis aí o semeadouro, o terreno fértil para se plantar as primeiras sementes da leitura. Que os livros estejam em qualquer lugar: nas estantes, sobre qualquer móvel, nos quartos, nas cozinhas, nos banheiros, no quintal. Que as crianças leiam sentadas, deitadas, no chão, na cama. Que as crianças leiam somente o título do livro, ou apenas uma página.  Que as crianças leiam histórias pequenas ou grandes, mas que leiam com prazer. Que as crianças se inebriem de leitura, seja poema com sua musicalidade e rima, sejam as histórias encantadas de príncipes e princesas, reis e rainhas, fadas, bruxas e duendes, animais e gente, castelos e reinos encantados.

Que venham as leituras, muitas, fecundas, vigorosas, vibrantes, apaixonantes, instigantes, sedutoras...  Que  a leitura possa transformar brasileiros em leitores!

Elba GGomes

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Instantâneos - Momentos de dor



4.
Com os olhos secos ela foi colocando os vestidos, saias, blusas e calças na mala. Escolheu as roupas que usava mais. Depois foi para as gavetas e selecionou o que era absolutamente necessário. Abriu uma caixinha de bijuterias e derramou tudo dentro de um saquinho de pano. Foi ao banheiro e escolheu alguns objetos, potes e vidros, colocou tudo numa bolsa pequena e encaixou dentro da mala. Numa sacola arrumou os sapatos e sandálias. Era tudo o que levaria daquela casa onde tinha vivido por tantos anos com ele. Os discos, os livros, a louça, os cristais, a prataria, os talheres, os móveis, os quadros, a roupa de mesa, de cama e de banho... com suas marcas e lembranças... tudo ficaria e estaria daí por diante submerso na memória. Antes de sair, tirou a aliança do dedo e colocou no cinzeiro sobre a cômoda do quarto. Saiu sem olhar para trás.

5 .
Depois do telefonema dela informando que estava divorciada, ele imediatamente começou a remoer as ideias para a carta. Refletiu, ponderou, sobrepesou as palavras, escreveu, reescreveu, rasgou muitas folhas de papel. Passaram-se muitos dias em que as ideias para o texto foram revistas, reavaliadas, repensadas continuamente. Enfim, exausto, ele considerou a carta terminada. Colocou-a no envelope e selou-o. Escreveu pela última vez na vida o nome dela. Na caixa do correio hesitou um pouco, afinal ela só pedira um tempo para resolver sua vida. E nesse tempo ele se comprometera com outra pessoa. Era uma carta difícil. Suas mãos estavam trêmulas de incerteza quando ele jogou o envelope pela fresta gelada da caixa do correio, naquele dia de inverno rigoroso.

6.

Quase quarenta anos depois eles se encontraram casualmente no saguão de um hotel. Mesmo com a devastação que o tempo tinha feito em suas faces, reconheceram-se imediatamente. Com um sorriso de surpresa, cumprimentaram-se como se tivessem se encontrado no dia anterior. Depois ficaram calados, olhos nos olhos durante minutos eternos. Tudo o que poderia ter sido passou como um filme veloz em suas mentes. Afastaram-se, cada um para seu lado, sem mais nenhuma palavra.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Lucro dos bancos: a responsabilidade também é sua


 
Li no site da revista Exame e em outros sites de economia, a divulgação do resultado do Banco do Brasil e, em minha caixa postal e nas redes sociais, referências, por sinal nada elogiosas, aos lucros também anunciados por outros bancos, acusando-os de ganância exagerada. Houve os que demonstraram indignação com o governo por permitir tal arroubo. Outros apelavam para os santos das causas perdidas. Não vi sequer um que fazia um mea-culpa em relação aos lucros das instituições financeiras.

Lamento informar, mas você também é responsável por esses ótimos resultados. Parabéns! Você colaborou com muitos dos seus recursos pessoais para isso. Faça as contas dos juros pagos, não só sobre o uso dos créditos rotativos do cheque especial e do cartão de crédito, como também pelos desperdiçados nos empréstimos pessoais e consignados que fez. Sem falar nos financiamentos de bens de consumo, veículos e casa própria.

E você que não pagou juros, não se exclua: você investiu em fundos pouco eficientes, com taxas de administração altíssimas. Veja aqueles fundos que pagam prêmios, perdem para caderneta de poupança, cobram 4% ou mais de taxa de administração e são campeões de captação de recursos, alguns com mais de R$ 4 bilhões de patrimônio líquido. E não pensem que estou exagerando, tirei essas informações dos sites dos bancos.

Nisso se enquadra também aquele que pagou tarifas caras e não checou, por puro comodismo, se outro banco oferece tarifas menores. Não cobrou o ressarcimento das cobranças lançadas equivocadamente – aliás, nem prestou atenção nelas. Não pediu desconto das anuidades do cartão de crédito e, pior: aceitou uma venda casada ao adquirir algum produto atrelado a uma concessão de crédito, ou contratou um título de capitalização só para ajudar o seu gerente a cumprir uma meta. Lembre-se de que você não é amigo de seu gerente, e sim cliente – muitas vezes desinformado. Infelizmente, é assim que ele percebe você. Seu gerente sabe que existem bancos melhores e investimentos melhores, mas dificilmente vai lhe dizer isso.

Quero salientar que não sou contra o lucro. Muito pelo contrário, sou empresário e dependo do lucro para continuar em atividade. Pensar que lucro é crime é uma ideia limitante. O lucro sustentável de um não pode estar atrelado ao prejuízo de outro. Ele só é duradouro se vier com a relação “ganha x ganha”, trabalho constante, inovação, pioneirismo, flexibilidade, boa prestação de serviços e boa gestão dos recursos financeiros – qualidade que pode ser aplicada à sua vida e à de sua família.

Pois bem. O lucro dos bancos também provém do desconhecimento que você tem sobre as regras da boa gestão de seu dinheiro, da sua desinformação ou desinteresse sobre assuntos que envolvem finanças e da incapacidade de entender que muitos problemas financeiros são causados pelo seu próprio comportamento. Quer uma prova? Quanto tempo você dedica por semana ao seu cuidado financeiro? E aos seus dentes? Compare! Seus dentes ganharam, não é mesmo?

Assim, é necessário investir tempo para cuidar de suas finanças pessoais e aprender sobre você mesmo e o mercado financeiro. Infelizmente, a maioria dos bancos não vai tomar a iniciativa de orientá-lo e esclarecê-lo com um manual detalhado de regras e dicas. Afinal, quanto mais desinformado você for, mais “especial” você será.

Lembre-se: todos os juros, tarifas e outras taxas que você pagou aos bancos, contribuindo para os lucros deles, poderiam ter ficado na sua conta corrente. Melhor ainda: esse dinheiro poderia ter sido investido, rendendo juros para você, taxas de administração e de performance para gestores e administradores (talvez um banco) e impostos para o governo, colaborando para aumentar a riqueza de todos à sua volta, inclusive você.

Rogério Olegário do Carmo, consultor financeiro pessoal e especialista em administração financeira e mercado de capitais pela FGV, é coautor do livro "Família, Afeto e Finanças – Como levar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar", em parceria com Angélica Rodrigues Santos.