Olhei
para minha perna, depois para a parede, de novo para perna e mais uma vez para
a parede. Acho que eu preciso levantar... mas levantar para quê? Bom, posso
fazer um chá. É, fazer um chá parece um bom motivo para abandonar essa
comparação entre perna e parede. Água na chaleira, saquinho de chá na xícara,
agora é só esperar... Beber chá sempre me traz uma sensação de tranquilidade,
ou talvez, melhor dizendo, de que alguma coisa faz sentido: a xícara, a água, o
saquinho de chá, o limão, o momento de despejar a água sobre o saquinho, a
antevisão do gozo de se sentar com a xícara de chá quente e um livro.
Ah,
sim, porque o prazer do chá está intimamente associado ao prazer da leitura.
Chá sem leitura seria como leitura sem chá, algo árido e desprovido de sentido.
Há, naturalmente, chás adequados aos diferentes tipos de literatura e livros
apropriados às diferentes espécies de chá. Se a escolha não for boa, logo se
percebe que ou o livro a ser lido não era o que imagináramos ou que o chá a ser
bebido não deveria ser esse.
É
tremendamente arriscado tentar combinações exóticas, mas às vezes é necessário,
pois algumas escolhas são muito complicadas. Por exemplo, o que beber quando
queremos ler um livro sobre o último teorema de Fermat? Ou o que ler quando
estamos ávidos por um chá de baunilha? Nesses casos em que a dúvida que nos
assola pode nos levar à imobilidade e à eterna contemplação de pernas e
paredes, recomendo apelar para o chá preto comum.
Eu
não poderia me conceber sem esses dois elementos. Muitas das minhas lembranças
giram em torno deles. Por exemplo, pouca coisa me lembro de uma viagem feita há
tempos para a Turquia, mas me lembro bem dos livros que li, um em particular, e
da experiência de beber o forte chá turco, tentando combiná-lo forçosamente com
a literatura levada para a viagem. Já me esqueci das pessoas e das situações
num escritório onde trabalhei, mas me lembro bem dos chás que eu levava e
tomava lá e quão pouco eles combinavam com os processos e relatórios que eu
tinha que ler. Aliás, é difícil, senão impossível, combinar um bom chá com a
leitura de enfadonhos relatórios, e pior ainda tentar beber um chá da categoria
dessa leitura. Nesse caso, a única solução é manter-se firme no chá e abandonar
essa nefasta literatura.
Essas
e outras experiências me ensinaram a necessidade de viajar, ou mesmo sair de
casa, acompanhada de uma diversidade grande de gêneros ou de livros ou de chás.
Fizeram de mim também uma pessoa exigente: como não gosto de uma infinidade de
chás, não leio uma infinidade de livros; como abomino uma infinidade de gêneros
e autores, não bebo uma infinidade de chás. Isso, no entanto, por mais estranho
que possa parecer, tem se mostrado, por fim, positivo. Não pude permanecer no
escritório que mencionei acima, por exemplo, devido à incompatibilidade entre a
leitura e o chá. Em outro trabalho abandonado, apesar do chá frequente e bom, a
leitura praticamente não existia e dessa maneira o chá se tornava impossível.
A
seleção de uma atividade remunerada deveria se tornar mais fácil, pois há
critérios bem definidos para fazê-lo, não é preciso usar outros tão difusos
como salários, benefícios, horários, etc. É fundamental que a atividade escolhida
comporte chá e leitura; uma vez esse pressuposto atendido, faz-se necessária a
compatibilização desses elementos, que, como mencionei anteriormente, pode
revelar-se muito complicada. Atividades que se concentram no chá, tais como
provadores de chá, membros da Academia Brasileira de Letras ou chá das cinco
acompanhada das dondocas da vizinhança, são muito perigosas. O provador de chá,
coitado, não tem sequer tempo para descobrir qual é o livro que combina com o
chá, antes de passar para um nova amostra, ou seja, temos chá, muito chá, com
muita diversidade, mas não temos livros... Como membros da Academia ou num chá
das cinco com as dondocas, dificilmente poder-se-á convencer os presentes que
devem permanecer calados para que possamos ler ou persuadi-los dos encantos de
uma leitura em voz alta. Esse último caso é, naturalmente, muito arriscado,
pois a escolha pode ser incompatível com o chá servido, colocando a perder
todos os esforços realizados.
As
atividades que se concentram na leitura, por sua vez, são muito mais
diversificadas: há aquelas que se limitam à leitura de relatórios; outras que
abrangem a literatura técnica e aquelas em que se pode, teoricamente, ler de
tudo. As primeiras podem ser descartadas pelas razões óbvias já mencionadas
anteriormente. As segundas podem ter encantos, dependendo do campo de estudo do
indivíduo e de sua habilidade para fazer combinações corretas. Se a pessoa sabe
que chá combinar com a leitura do mais novo tratado de biologia molecular ou do
mais revolucionário artigo sobre física de partículas, então não há problemas,
mas eu, infelizmente, ou talvez felizmente, não possuo tal criatividade.
A
última categoria, que parece a mais simpática, é, evidentemente, um engodo:
aqueles que trabalham em jornais só leem sobre suas pautas diárias e
dificilmente têm tempo para tomar chá; os professores concentram sua leitura em
seus temas de estudo e de aulas e dificilmente têm dinheiro para comprar chá; e
mesmo os críticos literários devem ler obrigatoriamente certos livros, alguns
dos quais sequer merecem um chá. Bom, parece que não é tão fácil assim...
Nurit Bensusan