Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Páscoa: mais afeto, menos chocolate



Angélica Rodrigues Santos *

Com a chegada da Páscoa, os apelos ao consumo de chocolates aumentam. E, para os comerciantes mais criativos, até outros produtos são atrelados aos desejos de “Feliz Páscoa”. Estão valendo kits de sabonetes, cremes e muitos outros objetos. Afinal, quem não quer ganhar uma lembrança de Páscoa? Isso acaba envolvendo muitas pessoas, não é mesmo?

Se fizermos uma análise mais cuidadosa, veremos que o sentido da Páscoa é algo muito mais amplo e bem diferente da entrega de chocolates.

Páscoa significa “passagem” e é uma maneira de celebrar a passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho, e ainda, a ressurreição de Jesus Cristo, que passou da morte para a vida. O simbolismo, no primeiro, fica ligado à travessia de uma vida difícil e injusta para uma vida melhor, com mais liberdade e qualidade. E, no segundo, refere-se também a uma mudança de estágio: das trevas para a luz. A tônica, então, é a mudança para uma vida nova.

Por isso, aproveite este momento especial do calendário e faça uma reflexão: do que você quer se libertar? O que você deseja mudar em sua vida? Se você tem dívidas, esta pode ser uma ocasião para decidir deixá-las para trás e realizar ações concretas para sua liberdade financeira.

Entre no clima das propagandas e dos sentimentos que evocam, mas de outra maneira: em vez de entrar na onda do consumo frenético de chocolates,  procure fazer uma revisão na sua vida financeira. E ative o seu desejo mais profundo de mudança, de virar a página das dívidas ou do aperto financeiro e entrar definitivamente no azul: uma passagem para um vida melhor.

Se ainda não colocou seus objetivos no papel, aproveite para fazê-lo. O que gostaria que fosse diferente na sua vida? O que é preciso mudar?

Foque nisso e comece a trabalhar essas metas com sua família. Se você tem filhos, inclua as crianças nessa aventura. Comece a ensinar essa ideia de “páscoa-passagem”. Isso não significa que você não vá presentear ninguém com chocolates, mas esse não é o foco principal da festa e sim a intenção de crescimento e libertação.

Os chocolates podem ser apenas um detalhe, algo mais modesto, dentro do seu orçamento. Se não for possível comprá-los, experimente fazer algo em casa. Valem bombons, brigadeiros e até geleias! Inove com doces ou biscoitos. O mais importante é transmitir seus sentimentos de bem querer e a torcida por uma vida melhor! Faça cartões que transmitam seus votos e não deixe de comemorar a Páscoa porque você está sem dinheiro. Descubra uma nova maneira de celebrar essa data e encontre um novo sentido nela. Busque receitas com amigos ou na internet. Faça diferente! Você pode enxugar gastos, que teria com os tradicionais ovos, e ainda se divertir na cozinha! E pode também aproveitar a data para “ganhar um extra”, criando todas essas coisas para vender.

Outro aspecto que induz as pessoas a comprarem muitos ovos de Páscoa, especialmente para presentar as crianças, é o sentimento de culpa que sentem. O pai que está muito ausente, a mãe que não tem tempo para ficar com os filhos, acabam tentando materializar o afeto em forma de chocolates. Cuidado também para não tentar medir o tamanho do amor pelo tamanho do ovo. Lembre-se de que o comércio tentará seduzi-lo com inúmeras propagadas com apelo emocional, que atrelam o consumo ao afeto.

Pense e reveja sua rotina: é possível estar mais com os filhos, com a família e amigos? Ou talvez com você mesmo? Exteriorize o carinho que sente por eles e por você com palavras de ternura, cartões gentis e gestos amorosos. Nesse quesito, use e abuse da criatividade! Enxugue gastos, consuma menos e experimente ter uma Páscoa com menos chocolate e mais afeto!

* Psicóloga, professora e supervisora, autora do livro “Família, afeto e finanças – como colocar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar”, em parceria com Rogério Olegário do Carmo (Ed. Gente)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Chá e livros



Olhei para minha perna, depois para a parede, de novo para perna e mais uma vez para a parede. Acho que eu preciso levantar... mas levantar para quê? Bom, posso fazer um chá. É, fazer um chá parece um bom motivo para abandonar essa comparação entre perna e parede. Água na chaleira, saquinho de chá na xícara, agora é só esperar... Beber chá sempre me traz uma sensação de tranquilidade, ou talvez, melhor dizendo, de que alguma coisa faz sentido: a xícara, a água, o saquinho de chá, o limão, o momento de despejar a água sobre o saquinho, a antevisão do gozo de se sentar com a xícara de chá quente e um livro.

Ah, sim, porque o prazer do chá está intimamente associado ao prazer da leitura. Chá sem leitura seria como leitura sem chá, algo árido e desprovido de sentido. Há, naturalmente, chás adequados aos diferentes tipos de literatura e livros apropriados às diferentes espécies de chá. Se a escolha não for boa, logo se percebe que ou o livro a ser lido não era o que imagináramos ou que o chá a ser bebido não deveria ser esse.

É tremendamente arriscado tentar combinações exóticas, mas às vezes é necessário, pois algumas escolhas são muito complicadas. Por exemplo, o que beber quando queremos ler um livro sobre o último teorema de Fermat? Ou o que ler quando estamos ávidos por um chá de baunilha? Nesses casos em que a dúvida que nos assola pode nos levar à imobilidade e à eterna contemplação de pernas e paredes, recomendo apelar para o chá preto comum.

Eu não poderia me conceber sem esses dois elementos. Muitas das minhas lembranças giram em torno deles. Por exemplo, pouca coisa me lembro de uma viagem feita há tempos para a Turquia, mas me lembro bem dos livros que li, um em particular, e da experiência de beber o forte chá turco, tentando combiná-lo forçosamente com a literatura levada para a viagem. Já me esqueci das pessoas e das situações num escritório onde trabalhei, mas me lembro bem dos chás que eu levava e tomava lá e quão pouco eles combinavam com os processos e relatórios que eu tinha que ler. Aliás, é difícil, senão impossível, combinar um bom chá com a leitura de enfadonhos relatórios, e pior ainda tentar beber um chá da categoria dessa leitura. Nesse caso, a única solução é manter-se firme no chá e abandonar essa nefasta literatura.

Essas e outras experiências me ensinaram a necessidade de viajar, ou mesmo sair de casa, acompanhada de uma diversidade grande de gêneros ou de livros ou de chás. Fizeram de mim também uma pessoa exigente: como não gosto de uma infinidade de chás, não leio uma infinidade de livros; como abomino uma infinidade de gêneros e autores, não bebo uma infinidade de chás. Isso, no entanto, por mais estranho que possa parecer, tem se mostrado, por fim, positivo. Não pude permanecer no escritório que mencionei acima, por exemplo, devido à incompatibilidade entre a leitura e o chá. Em outro trabalho abandonado, apesar do chá frequente e bom, a leitura praticamente não existia e dessa maneira o chá se tornava impossível.

A seleção de uma atividade remunerada deveria se tornar mais fácil, pois há critérios bem definidos para fazê-lo, não é preciso usar outros tão difusos como salários, benefícios, horários, etc. É fundamental que a atividade escolhida comporte chá e leitura; uma vez esse pressuposto atendido, faz-se necessária a compatibilização desses elementos, que, como mencionei anteriormente, pode revelar-se muito complicada. Atividades que se concentram no chá, tais como provadores de chá, membros da Academia Brasileira de Letras ou chá das cinco acompanhada das dondocas da vizinhança, são muito perigosas. O provador de chá, coitado, não tem sequer tempo para descobrir qual é o livro que combina com o chá, antes de passar para um nova amostra, ou seja, temos chá, muito chá, com muita diversidade, mas não temos livros... Como membros da Academia ou num chá das cinco com as dondocas, dificilmente poder-se-á convencer os presentes que devem permanecer calados para que possamos ler ou persuadi-los dos encantos de uma leitura em voz alta. Esse último caso é, naturalmente, muito arriscado, pois a escolha pode ser incompatível com o chá servido, colocando a perder todos os esforços realizados.

As atividades que se concentram na leitura, por sua vez, são muito mais diversificadas: há aquelas que se limitam à leitura de relatórios; outras que abrangem a literatura técnica e aquelas em que se pode, teoricamente, ler de tudo. As primeiras podem ser descartadas pelas razões óbvias já mencionadas anteriormente. As segundas podem ter encantos, dependendo do campo de estudo do indivíduo e de sua habilidade para fazer combinações corretas. Se a pessoa sabe que chá combinar com a leitura do mais novo tratado de biologia molecular ou do mais revolucionário artigo sobre física de partículas, então não há problemas, mas eu, infelizmente, ou talvez felizmente, não possuo tal criatividade.

A última categoria, que parece a mais simpática, é, evidentemente, um engodo: aqueles que trabalham em jornais só leem sobre suas pautas diárias e dificilmente têm tempo para tomar chá; os professores concentram sua leitura em seus temas de estudo e de aulas e dificilmente têm dinheiro para comprar chá; e mesmo os críticos literários devem ler obrigatoriamente certos livros, alguns dos quais sequer merecem um chá. Bom, parece que não é tão fácil assim...


Nurit Bensusan

segunda-feira, 10 de março de 2014

Xadrez nas escolas? Vamos acabar com isso!



O jogo de xadrez é preconceituoso, racista, machista, pervertido, politicamente incorreto.

Já começa assim: brancas de um lado, pretas do outro. Um estímulo à segregação racial. Adivinha quais as preferidas? Brancas, claro, em 92,8% dos casos. E por quê? Porque são privilegiadas. As regras facilitam para elas. Sempre começam o jogo e podem escolher as melhores casas. 

No posicionamento do tabuleiro, casa branca à direita, preta à esquerda. Isso deve ter a mão dos comunistas ou da KKK. Malba Tahan não ousou calcular isso.

Os peões, coitados, subjugados, usados como escudos. Todos com uniforme proletário, não têm identidade própria. Deve ser para que se sintam parte do todo e não indivíduos donos do seu próprio eu. Têm direitos limitados e são os primeiros a ser sacrificados. Bois de piranha. Sociedade injusta, essa. São os únicos que sequer tem o direito de voltar atrás. Têm direito apenas a um passo duplo. Depois são tolhidos, apenas passos curtos lhes são permitidos, limitados, marchando para o sacrifício. Brigam entre eles, acabam sendo aniquilados pelos poderosos, certamente da direita ultrarradical. 

Ao serem comidos, eliminados, ninguém se importa. São jogados numa vala comum e o jogo continua. Menos um peão, apenas isso! Talvez quando o último for eliminado, porque não terão outro para sacrificar e fazer o serviço sujo, é que poderá surgir algum lamento. Nada mais.

É um cargo machista. Não mudou nem com o passar dos tempos. São todos homens, como se a mulher não tivesse o direito de lutar. Nem o feminino é conhecido ao certo: peoa, ou piorra? Na dúvida, deixaram apenas homens.

É um jogo que deveria ser laico, mas não o é. Não respeita a liberdade religiosa, o direito de escolha do próprio credo. Nunca vi um tabuleiro com pastores, pais de santo, rabinos ou xeiques. Só tem bispos. E eles não se entendem. Nada de amor ao próximo. O ódio racial fala mais alto. Ficam fitando as diagonais. Se puderem, se matam, se comem. 

Nesse jogo pode ter nascido a semente da pedofilia na igreja. É bispo comendo peão, comendo bispo, comendo rainha. Se facilitar, comem até cavalo. Quando encurralam o rei, o jogo acaba. Pelo menos o do rei escapa. 

Dizem que certa vez um árabe e um judeu estavam jogando amistosamente uma partida de xadrez, cada um com as peças da sua cultura, substituindo os bispos por xeiques e rabinos. Enquanto estava peão contra peão, primo contra primo, tudo ia bem. Mas até hoje não se sabe se foi quando o xeique quis comer o rabino ou o rabino quis comer o xeique que teria começado a guerra entre eles. As torres de ambos foram movidas dos cantos para a faixa de Gaza e até hoje está confuso por lá.

Os animais também não são respeitados. Trabalham muito, como cavalos, nunca em linha reta. Não raro são enviados para trás das tropas inimigas. E a zoofilia corre solta. É só facilitar e qualquer um pode comer o cavalo, dos peões ao rei. Não escapam nem da rainha nem do bispo. E cavalo come cavalo. Nem pensaram em colocar um casal de equinos para evitar isso. Jogo machista, que estimula o homossexualismo. 

O rei e a rainha até começam lado a lado. Mas nunca mais se encontram. Não há valorização da família. Uma rainha vive de olho no rei da outra. Facilita pra ver. Os reis ficam na deles. Mas se a rainha do outro dormir na casa ao lado, babaus! E tem briga de aranha também. Se puder, a rainha branca come a rainha preta ou a preta come a branca. Enquanto não chegam uma na outra, vão traçando os peões. Eles não têm chance. Dificilmente escapam quando uma rainha os persegue. Assédio sexual explícito. Ela come mesmo, se puder, um depois do outro. Alguns ainda as chamam de damas! Agem como dominadoras, donas do campinho. Assédio moral da pior espécie. Ou seria bullying? 

As torres são símbolo da opressão. Do capitalismo. A elas é dado poder imenso. Valem mais do que os cavalos, do que os bispos. Valem mais do que vários peões juntos. Materialismo puro! Claro que não é à toa. Tudo tem um simbolismo nefasto por trás. 

E às vezes, no meio do campo de batalha, com os exércitos em frangalhos, tabuleiro descoberto, quando um peão atinge a linha final, iludido com a libertação, o rei pensa em luxúria. Poderia pedir mais uma torre, um cavalo, um religioso, mas nem pensa nisso. 
Pede mais uma rainha. Mesmo que a dele ainda esteja no jogo. O rei fica com as duas, se precisar sacrificar uma, não diferencia a primeira da segunda. E o peão que chegou lá? Esqueceu, né? Todos esquecem. Foi trocado, ficou inútil.

Ainda dizem que é um jogo de estratégia, que estimula o raciocínio, que facilita a matemática, o pensar. Não passa de sem-vergonhice, um cenário racista, machista, da burguesia preconceituosa. 

Por essas e outras, deve estar certo quem acusou Monteiro Lobato de racista e pediu para banir o "Sítio do Pica-pau (notem que nome capcioso) Amarelo" (e ufanista) das escolas brasileiras. E eu que tinha tanto carinho pela Tia Anastácia, quase ternura. Descobri que fui manipulado sem perceber.

Falar sobre educação financeira? Hoje não. Sabe-se lá como podem interpretar isso...

Álvaro Modernell

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Fim do horário de verão!


Adoro quando acaba o horário de verão. Ainda mais agora, que estou levantando antes do sol nascer. Acredite quem quiser. Até eu duvido! Mas só gosto do fim do horário de verão no período da manhã. À tarde sinto falta dos dias mais longos, das tardes mais compridas. Por mim teria horário de verão o ano todo. Mas apenas no período da tarde. Não no período da manhã. Nunca tive dificuldade para me adaptar ao fuso, nas vezes que viajei para o Oeste. Quando viajo para o Leste, é um caos biológico. Mal começo a me adaptar, e já é hora de voltar. Talvez seja melhor viajar apenas para os outros pontos cardeais.

Adaptar-se às mudanças do horário de verão é como fazer dieta. Não sou adepto e não tenho o hábito. Mas não me importo de fazê-las, desde que seja entre as refeições e que respeite os finais de semana. Banho frio acho uma delícia, na praia, para tirar a areia. Ou num riacho, numa cachoeira. Nos outros 367 dias do ano, prefiro banho morno ou quente.

Voltando ao tema alimentação, nunca exagero. Como só até ficar satisfeito. Depois de saciar a fome, a vontade de comer e a gula. Claro, sempre reservo espaço para sobremesa e cafezinho. Mas prefiro alimentação saudável, aquela que me faz bem, que me dá prazer, que balanceia bem o peso na balança com o peso na consciência. Se preciso for, um abacaxi na sobremesa ou limonada para auxiliar na digestão. Afinal, outras refeições virão! Uma caminhada ajuda.

Fumei durante 18 anos. Nunca achei difícil parar de fumar. O difícil era não voltar. Não voltei, desde o último cigarro, há doze anos. Pudera, a vida de fumantes hoje em dia deve ser um saco, cheia de restrições. Bons vinhos, apesar de apreciá-los, paro de bebê-los sem dificuldade, assim que a garrafa acaba. Bons vinhos não são como cervejas que se compram às dúzias. Aprecio e valorizo cada gole.

Não tenho problema com vícios. Chimarrão, por exemplo: tomo há uns 30 anos diariamente e não viciei. Apesar de sentir falta quando viajo e fico dias sem tomá-lo. Fico seco de vontade. Mas passa assim que volto a tomar.

Nunca precisei de muito dinheiro para ser feliz. Apenas o suficiente para comprar ou pagar pelo que tinha vontade. Pena que nem sempre essa conta fecha. Acabo administrando minhas vontades e vou levando. Pra quem pensa que sou um grande poupador, não sou. Gosto de gastar com o que gosto. Apenas aprendi que ganhando e juntando antes de gastar pode-se aproveitar melhor o dinheiro e o que ele pode nos proporcionar.

A vida é tão simples. Pra que complicar? Fim do horário de verão? Vamos acertar o relógio e bola pra frente.


Álvaro Modernell

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Você sabe usar seu cartão de crédito?


Para responder a essa questão, faça o seguinte: ligue para a administradora do seu cartão e peça para trocar a data do vencimento das próximas faturas para dois dias antes da chegada do seu pagamento. Isto é possível? Se a resposta for sim, você usa bem o seu cartão de crédito. Parabéns. Se você respondeu não, sinto muito dizer, você está encrencado.

Se esse é o seu caso, você está usando o cartão de crédito para ter crédito; não quero dizer que você esteja errado, afinal o cartão é de crédito e qualquer criança sabe disso, perceba o diálogo:

- Papai, compra isto prá mim?

- Hoje não dá, papai está sem dinheiro.

- Então dá o cartão...

E tem mais, por trás desta pequenina ferramenta você ainda pode estar escondendo, de você mesmo, gastos e atos que não quer ver ou assumir. A começar por colocar o cartão de crédito como item de seu orçamento mensal – “gastei R$ 3 mil de cartão de crédito”. É mesmo? Você comeu, dirigiu e vestiu cartão de crédito? Não, você comprou alimentos, combustível, passagens, roupas, e pagou com cartão de crédito, muitas vezes escondendo a sua real situação financeira e aquelas compras que fez de impulso, por carência, estresse, raiva, inveja, etc. Compras que você jamais faria se tivesse que pagá-las com dinheiro.

Além disso, o cartão de crédito tira de você a contrapartida (sensação) do pagamento. Para entender isso é muito simples, basta prestar atenção: na próxima compra, pague em dinheiro e observe o seu dinheiro indo embora. Na compra seguinte pague com o cartão de crédito e note que você recebe o(s) produto(s), entrega o cartão e, em seguida o recebe de volta. Para o seu cérebro, nada aconteceu. O cartão, ao contrário do dinheiro, voltou para você. E agora o pior: para verificar quanto dinheiro ainda há, você consulta o banco, que lhe dá uma informação falsa, pois a compra paga com o cartão só aparecerá tempos depois, o suficiente, muitas vezes, para que você tenha esquecido do que foi comprado.

Para resolver isso, que tal chamar seu de cartão de crédito de cartão de dinheiro? Afinal, ele é dinheiro vivo e bem vivo. Logo, antes de usar o cartão, faça a si três perguntas: posso pagar com dinheiro? Posso pagar com cheque? Posso pagar com cartão de débito?

Se a resposta for sim a uma dessas condições, então você pode pagar com cartão de crédito, para a sua conveniência, por ganhar algum bônus. Se respondeu não, você não deve usar o cartão, pois estará contratando crédito, gastará mais do que pode e terá que contar com a chegada de seu próximo pagamento para quitar a fatura.

Eu já sei, você vai dizer que planejou, cuidadosamente, a data de vencimento da fatura para 2 dias após a data de seu salário. Isso não é vantagem alguma, pois, ao pagar a fatura, você ficará “duro”, atrasado 28 dias em seu orçamento mensal. Assim, com pouco dinheiro, você não conseguirá usar os demais meios de pagamento, tornar-se-á dependente do cartão de crédito e só comprará onde ele for aceito. Perderá a liberdade financeira, o que é o primeiro passo para o endividamento.

Cartão de crédito é dinheiro e como tal deve ser usado. Ao pagar com cartão de crédito, mesmo que o dinheiro não saia de sua conta corrente, ele deve sair de sua cabeça e de sua planilha pessoal. Assim, você viverá à frente dele e poderá desfrutar do conforto e das facilidades que ele traz. Encerro lançando um desafio: antecipe a data de vencimento de sua fatura para dois dias antes de seu pagamento. Sua tranquilidade e seu futuro agradecem.


Rogério Olegário do Carmo, consultor financeiro pessoal e especialista em administração financeira e mercado de capitais, é coautor do livro "Família, Afeto e Finanças – Como levar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar", em parceria com a sua esposa, a psicóloga Angélica Rodrigues Santos.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sete dias


Às vezes imagino o que os livros de história do futuro vão falar sobre esses dias...
No entanto, sempre tenho certeza sobre o que eles não vão falar.
Mas não estou escrevendo para deixar algum registro da época para gerações futuras – até porque não sei se haverá gerações futuras. Nem escrevo por amor à arte de escrever ou qualquer outro motivo nobre, como fazer uma homenagem àqueles que sei que vão morrer ou coisa semelhante.
Não, nada disso. Escrevo para organizar meus pensamentos. Escrevo para coordenar minhas ideias e tentar, com isso, lembrar-me melhor das coisas que virão.
E se com isso algo coerente acabar vazando para o papel e a História, melhor.
Mas escrevo, somente, para sobreviver.


DIA 1


Acordei – acordei? – sentindo-me estranho naquela manhã de terça-feira.

A cabeça enevoada trazia um tom de irrealidade para tudo, como se eu estivesse apenas parcialmente consciente. O banho gelado não ajudou a dissipar o incômodo.

Enquanto tomava café e me preparava para ir à universidade, revisei mentalmente o que havia feito no dia anterior e o que comera no jantar. As lembranças demoravam a chegar, como se fossem resgatadas de um local distante e profundo, mas mesmo assim tive certeza de que não fizera nada que pudesse justificar aquela sensação.

Na UnB, à medida que as aulas evoluíam, comecei a me sentir mais e mais ansioso, como se algo muito importante estivesse para acontecer, até chegar à última aula do dia – Física 2, onde estudávamos Física Ótica.

O professor havia desenhado um conjunto de lentes de formatos variados no quadro verde, e estava começando suas explicações quando, de repente, eu sabia o que iria acontecer.

Levantei-me e, caminhando quase como hipnotizado, aproximei-me de Leonardo, que como sempre estava sentado na primeira fileira. Por alguns segundos fiquei olhando para sua fronte franzida, como se ele estivesse desenhando mentalmente as lentes e raios, até que, em algum ponto entre seus olhos e o quadro, uma luz começou a brilhar.

Por alguns poucos segundos, a pequena nuvem luminosa cresceu, depois começou a se compactar e tomou a forma de uma lente de gelo, enquanto crescia o alvoroço entre a turma. Mais um pouco e Leo soltou um gemido de exaustão, desmaiando, enquanto a lente caía no chão, estilhaçando-se com um ruído surdo.

Menos de uma hora depois, vídeos gravados por dois celulares de alunos da turma já estavam no Youtube, mas, com a quantidade de vídeos falsos e histórias absurdas circulando diariamente na internet, simplesmente foram engolidos pelo excesso de informações. Eu apareço no canto de um desses vídeos – sou o cara de pé, com jeans rasgados e uma camisa vermelha, que parece estar em transe enquanto olha para a lente se formando.

Quanto aos jornais, a verdade é que a única notícia para eles foi a que um estudante tinha entrado em coma durante a aula e despertado apenas no dia seguinte – ninguém se interessou pelas histórias fantasiosas da turma, supondo ser algum tipo de trote.

Já entre os alunos, inúmeras teorias foram criadas e abandonadas antes mesmo que Leo acordasse. A mais cotada, bem me lembro, era que de alguma forma ele usara seus “poderes mentais” para agregar o vapor d'água do ar (daí a pequena nuvem luminosa) que, sob pressão, mudou de estado até ficar sólido. Agora, como ele havia desenvolvido ou adquirido esses “poderes mentais” ainda era um mistério que continuaria – continua – sem solução.

Provavelmente a história teria caído no esquecimento e se transformado em mais uma lenda urbana, se tudo tivesse acabado por aí.

Mas não acabou.

DIA 2


Dois dias depois eu continuava com aquela sensação estranha, como se não estivesse totalmente acordado.

Na verdade, dizer isso não é preciso. O certo é que, como em um sonho, o tempo parecia “pular”: eu sentia como se nada houvesse acontecido entre o episódio da lente na sala de aula e aquela tarde de quinta. A lembrança de dois dias atrás, estranhamente, era muito mais clara que a do dia anterior.

O trote que vínhamos preparando para os calouros do curso finalmente estava pronto para ser pregado: Fomos à aula de educação física dos calouros, devidamente equipados com “carroças” prontas para a corrida.

Os calouros ficavam encarregados de puxar suas “carroças” – na verdade, plataformas de madeira com rodas de rolimã – por cinquenta metros da pista de corrida do Centro Olímpico da Universidade. A promessa é que aquele que chegasse primeiro seria dispensado dos cortes de cabelo e tintas que seriam aplicados aos demais.

Obviamente, nosso objetivo era não deixar nenhum deles atingir a linha de chegada!

Na pista de corrida, os dez veteranos mais pesados subiram nas carroças e entregaram as cordas para dez “voluntários” puxarem.

Dos dez calouros que começaram a puxar as “carroças”, apenas oito conseguiram tirá-las do lugar. Após cerca de quinze metros, um segundo veterano subiu em cada carroça, e mais quatro desistiram. Mais uns quinze metros e um terceiro veterano subiu, deixando três dos calouros restantes largados ao chão, bufando. Só um continuou, esforçando-se para chegar à linha de chegada, vinte metros à frente.

Um pouco mais à frente, mais um veterano subiu à carroça, se apertando aos demais para caber na apertada prancha de madeira. O calouro, de corpo mediano, se esforçou mais e, animado pela gritaria dos outros calouros, continuou.

Agora, era uma questão de honra não deixar a carroça cruzar a linha de chegada, poucos metros à frente. Como não havia mais espaço na carroça, Pam-Pam – um veterano que, sozinho, pesava mais que quaisquer outros dois juntos – substituiu um dos veteranos sobre a carroça. O garoto bufou, se esforçou e continuou, pé ante pé.

Quando faltavam apenas dois ou três metros, outros dois veteranos se agarraram aos demais sobre a carroça, equilibrando-se para não cair, dispostos a parar o calouro de qualquer jeito. A carroça rangeu e, com um estalo forte, o eixo traseiro quebrou, quase derrubando dois veteranos e forçando o calouro a parar por um instante. Outros veteranos correram para aumentar o peso, fazendo uma algazarra.

Mas o jovem, suando e com o olhar esgazeado fixo na linha de chegada, continuou puxando.

Quando ele finalmente cruzou a linha de chegada, a carroça tinha duas rodas a menos, e quase dez pessoas se equilibravam, umas sobre as outras, na plataforma de madeira. Pelos cálculos que fizemos, alguns dias mais tarde, ele estava arrastando mais de seiscentos quilos sobre a áspera pista de corrida.

Como Jean (esse era o nome do calouro) não tinha nada incomum que saltasse aos olhos – como “superforça” ou algo assim –, na época ninguém ligou esse episódio à materialização da lente em sala de aula dois dias antes. Após a surpresa inicial, sem termos chegado a uma explicação razoável para o que acontecera, as especulações foram deixadas de lado e ele simplesmente virou um herói entre calouros; e mesmo os veteranos respeitaram sua capacidade de não desistir.

Usualmente, ele não tinha força, velocidade ou inteligência além do comum – mas ele sempre conseguia um pouco mais, quando realmente se esforçava. Ninguém pensou que justamente essa capacidade de extrair energia além do limite, quando todos já haviam desistido, era algo além do normal.

Quer dizer, ninguém pensou nisso até a próxima segunda-feira, quando tudo começou a acontecer ao mesmo tempo.

DIA 3


Acho que neste ponto cabe uma digressão, quem sabe algo me vem à mente enquanto tento organizar os pensamentos, resgatando da memória os dias que precederam aquela primeira terça-feira...

Quando tudo começou a acontecer. Era assim que nos referíamos àquela semana quando... bem, quando tudo começou a acontecer!

Conforme os devaneios dos nerds viciados em histórias de ficção científica e em quadrinhos da nossa turma, algo deveria ter acontecido nos dias que precederam a primeira manifestação de “poder” – a criação da lente por Leo. Um meteoro contendo esporos alienígenas teria caído, alguma fenda para outra dimensão teria se aberto ou algum tipo de tempestade cósmica teria atingido a Terra, provocando mutações.

Ainda segundo eles, precisávamos nos precaver, porque em breve apareceriam funcionários do governo tentando nos prender, como se fôssemos algum tipo de ameaça à segurança nacional; ou, quem sabe, um grupo de cientistas de alguma organização desconhecida surgiria para ou justificar o acontecido ou para nos capturar para análise e posterior reprodução de nossas habilidades em larga escala, para vender ao exército do país que pagasse mais.

Bem, até onde eu sei, eles estavam errados em ambas as coisas.

Alguns dias mais tarde, quando descobri o porquê de minha mente estar sempre enevoada e de alguns dias parecerem mais reais que outros, fiz uma pesquisa extensa na internet, em jornais, blogs e até mesmo sites de diversos grupos religiosos e esotéricos. Absolutamente nada diferente aconteceu naqueles dias que precederam a primeira manifestação – pelo menos nada de que a humanidade tivesse se dado conta.

Tentei analisar os alunos das turmas envolvidas, buscando pontos em comum, mas havia gente de toda parte do país, e de outros países, gente que poucas semanas antes vivia a centenas ou milhares de quilômetros de distância. Os estranhos eventos ocorriam apenas com estudantes da UnB, como se algo houvesse sido iniciado daquele ponto, mas o que era, e se ficaria restrito à universidade, ainda não sabíamos.

Quanto ao governo... Bem, eles levaram quase vinte anos para elaborar as primeiras leis sobre a internet; e não seria dessa vez que se tornariam mais ágeis. Nada de cientistas malucos, também, embora diversos de nós tenham demonstrado suas habilidades em diversos laboratórios de universidades e centros de pesquisa do país, quando a área científica finalmente acreditou que não era mais um golpe de mídia.

A mídia... Essa sim, agiu rápido. Em pouco tempo estávamos nos jornais, e já na segunda semana chegavam a nós propostas variadas, desde estrear comerciais e posar para revistas, até o convite para estrelarmos uma versão especial do programa “Big Brother”, em uma casa habitada apenas por pessoas com habilidades especiais.

Mas estou divagando. Divagando sobre o que sei que vai acontecer. O que eu queria dizer é que, naquela segunda, as coisas de repente começaram a acontecer mais rápido.

Logo no início do dia, a Samara – uma bela morena que havia entrado no mesmo semestre que eu – “empurrou” um engraçadinho que estava enchendo sua paciência, sem tocar nele, na área das lanchonetes. O garoto caiu sentado e foi arrastado por uma força invisível por mais de cinco metros, parando próximo a alguns grupos que discutiam os episódios da semana anterior.

Quando uma segunda pessoa – um sujeito que cursava arquitetura, de quem não lembro o nome – descobriu que conseguia influenciar os outros, durante uma partida de truco, alguém levantou a hipótese de que as ocorrências indicavam que algo estava acontecendo em larga escala na universidade.

Bastou a fagulha dessa ideia para uma verdadeira febre se abater sobre todos, cada um buscando, de forma escondida ou explicitamente, descobrir se tinha algum tipo de “poder”.

E de fato alguns outros descobriram que efetivamente conseguiam fazer algo diferente. Nada de coisas “absurdas” (olhe só para mim, falando de absurdo em uma situação dessas!), como fazer o corpo pegar fogo, ficar invisível ou esticar. Mas, definitivamente, coisas fora do normal.

Algum tempo depois, eu e alguns dos outros começamos a perceber um certo padrão nos poderes que se manifestavam, pois todos pareciam de alguma forma associados a faculdades mentais. E, em nossas pesquisas, curiosamente descobrimos que todos os “poderes” pareciam ter precedente entre os milagres atribuídos a “santos” e “gurus” no correr da História.

Mas estou novamente me adiantando. Naquela segunda, que convencionei chamar de “dia 3”, tudo começou.

Mas o que realmente me levou a escrever foram os fatos de hoje; o “dia 4”. O dia em que descobri por que minha mente tem estado enevoada, e o dia em que descobri por que tenho tanta certeza sobre algumas coisas que ainda estão por acontecer.

DIA 4 - Hoje


Hoje, novamente, acordei com aquela estranha sensação de que minha mente estava enevoada.

Tentei me lembrar do dia anterior.

Apesar de o “dia 3” estar bem claro na minha lembrança, precisei de vários minutos me esforçando para tentar recuperar a memória do que ocorrera nas duas semanas seguintes.

Assustei-me quando percebi que dezesseis dias tinham se passado desde aquela segunda-feira. Conferi no relógio, olhando com estranheza a data: quarta feira, 22 de abril de 2009. Mas por que as duas semanas passadas estavam tão enevoadas?

A revelação me chegou como uma luz em um quarto escuro, que cega antes de desvendar. Ainda que eu não soubesse por que, um medo terrível fez doer minha barriga e um calafrio subiu pela espinha, enquanto lágrimas me brotaram nos olhos, sem que eu conseguisse impedir.

Eu estava tentando lembrar para o lado errado! Por isso era tão difícil!

As memórias do futuro me atingiram de forma fragmentária, como se eu estivesse tentando ver algo que continuamente fugisse do meu foco de visão. Quanto mais eu lembrava, maior o medo se tornava, ainda que eu não conseguisse ver ainda o porquê desse medo.

*          *          *

Desisto de ir para a universidade, até porque sinto que não adianta ir lá até que tenha uma ideia clara sobre o que preciso fazer.

Abro a tampa do laptop e começo a escrever, para organizar as ideias, para clarear na mente os últimos dias e quem sabe com isso ajudar a lembrar dos dias que virão.

Às vezes imagino o que os livros de história do futuro vão falar sobre estes dias... No entanto, sempre tenho certeza sobre o que eles não vão falar.

Mas não estou escrevendo para deixar algum registro da época para gerações futuras – até porque não sei se haverá gerações futuras. Nem escrevo por amor à arte de escrever ou qualquer outro motivo nobre, como fazer uma homenagem àqueles que sei que vão morrer ou coisa semelhante.

Não, nada disso. Escrevo para organizar meus pensamentos. Escrevo para coordenar minhas ideias e tentar, com isso, lembrar-me melhor das coisas que virão.

E se com isso algo coerente acabar vazando para o papel e a História, melhor.

Mas escrevo, somente, para sobreviver.

O medo dói em meu estômago enquanto me forço a lembrar dos últimos dias, enquanto me preparo psicologicamente para tentar lembrar dos dias que virão.

Há duas semanas, Pam-Pam, o veterano grandalhão, começou a apresentar estranhos calombos nas costas. Sua mãe o levou a um dermatologista, que verificou que as protuberâncias que se assemelhavam a espinhos eram de um material semelhante às unhas – embora nós achássemos que pareciam mais com pequenos chifres de rinoceronte. Seus cabelos começaram a cair e em uma semana não havia um só pelo em seu corpo. Sua família, assustada, o enviou para uma clínica de oncologia nos Estados Unidos, na esperança de que algum médico possa diagnosticar melhor o que está ocorrendo.

Marco, um calouro que tinha vindo do Rio de Janeiro, estava assistindo a uma aula quando pareceu entrar em transe. Ao fim da classe, quando todos se levantaram para sair, perceberam que ele permaneceu sentado. Alertados já pelos estranhos acontecimentos que vinham ocorrendo, chamaram sua família. Quando seu pai chegou, a turma já havia percebido que ele não estava em transe – apenas se movia muito, muito lentamente. Carregaram-no para uma ambulância e não tivemos notícia dele desde então.

Mas nem todos os casos eram dramáticos. Por exemplo, Míriam, uma nissei extremamente simpática, descobriu que conseguia projetar sua mente com facilidade para qualquer lugar, tendo inclusive visto seus avós no Japão e trazido notícias para sua família. Seus pais estavam orgulhosos, julgando que a “projeção astral”, como chamavam, era uma evidência de que a filha estava transcendendo a matéria e entrando em um estado búdico.

Casos de transes extáticos, empatia, telepatia, bicorporiedade, levitação, transcomunicação, clarividência, transfiguração e outros tantos termos resgatados da literatura religiosa e esotérica pipocavam todos os dias no campus e, embora algumas pessoas tentassem ignorar seus dons e continuar levando vida normal, alguns os viam como pretexto para abandonar totalmente o que faziam e partir em busca de alguma coisa nova.

Estranhamente, mesmo depois de vinte dias desde o episódio com Leonardo na aula de Física Ótica, só os estudantes da UnB eram afetados – nenhum professor, funcionário ou visitante havia demonstrado nada de excepcional.

Ao recordar os fatos das últimas semanas, percebo que não lembro de ter desenvolvido esse dom de lembrar coisas futuras em nenhum momento.

Na verdade, me recordo que minha vida correu de maneira bastante normal nestas últimas semanas, exceto pelo alvoroço que ocorria à minha volta toda vez que alguém começava a levitar, a falar em línguas estranhas ou emitir um halo de luz em volta da cabeça.

Então, compreendo que apenas nos dias em que minhas lembranças estão mais claras – os dias um, dois e três e o dia quatro, hoje – eu realmente lembrei de algo futuro. Mas é mais que isso: nos outros dias, eu nem mesmo me recordava de que havia lembrado de algo futuro!

É quando a verdade, mesmo que ainda incompleta, me atinge com um soco no estômago: minha habilidade não é a de lembrar de coisas futuras como se houvessem acontecido!

Minha habilidade é de projetar minha consciência para dias passados!

Por isso a data me pareceu estranha no início do dia: antes de acordar hoje, eu havia acordado quase dois meses no futuro, em 7 de junho!

Aos poucos, a memória vai retornando, ainda embrenhada em fumaça, e percebo que meu poder não é absoluto: preciso lutar com o cérebro do meu “eu” atual para resgatar as lembranças, sejam do futuro, sejam do passado do dia atual.

Com o medo fazendo subir a bile até minha boca, olho pela janela para o dia que se encerra e finalmente percebo que trouxe duas mensagens bem claras de minhas memórias do futuro:

A primeira, de que algo ruim, muito ruim, vai acontecer caso eu não use as lembranças que ainda não consegui resgatar para mudar determinados fatos do passado.

E a segunda, que tenho apenas sete chances, sete dias onde minha alteração pode fazer diferença.

Lágrimas de medo me escorrem no rosto quando defronto a realidade imutável: o quarto desses dias terminou.

E eu ainda não me recordo do que preciso fazer!



Alexandre Santos Lobão

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Conto de Natal



Meu nome é Severino e tenho 10 anos. Moro num grotão, no interior do Estado... Não importa o nome. Sou brasileiro. Aqui moram 10 famílias e tenho 10 irmãos. Acho que o número 10 me acompanha porque sempre tiro 10 na escola. Pois tem uma escola no meu recanto e a professora anda 10 léguas para chegar aqui. Eu gosto muito de estudar e sou apaixonado com o estudo dos mapas porque eles me mostram que existem mais lugares e pessoas diferentes no mundo. Minha professora é muito sabida. Ela conhece o mundo inteiro viajando pelos mapas. Ela tem muitas fotos de vários países que ela recorta de revistas. Eu nunca vi uma revista, mas me contento com o que ela mostra. Assim, eu conheci o mar, a montanha, as cidades, a neve, os carros, os barcos, os aviões e até homens que voam de cima de uma pedra. É muito legal porque de noite eu fecho os olhos e vejo de novo tudo o que ela mostrou.

Esta semana, a professora falou muito sobre o Natal e mostrou árvores enfeitadas com bolas coloridas, sininhos e estrelas. E tinha até neve. No alto, um anjo de asas abertas sorria pra gente. Ela explicou o que era o Natal, falou do nascimento de um menino pobre numa manjedoura (um lugar onde se põe comida para os animais: as vacas e os bois) e que esse menino tinha vindo ao nosso mundo para salvar os homens. Eu não entendi bem essa parte, mas achei lindo aquele menininho ali junto com os bichos. Ela também explicou que uns reis (homens com coroa na cabeça) levaram presentes para o menininho.

Nossa professora explicou que, hoje, no lugar dos reis, existe um velhinho de barbas brancas, chamado Papai Noel, que dá presentes a crianças no mundo inteiro. E que ele não consegue presentear todas as crianças. Só que ela não explicou isso direito. Eu até vi a foto dele. Parece boa gente. E anda num negócio chamado trenó puxado por uns bichos parecidos com cabras de grandes chifres

Ela inventou uma brincadeira conosco: a gente fechava os olhos e imaginava o velhinho dando presentes para nós; figuras de bicicletas, carrinhos, bolas, bonecas, roupas, sapatos e livros: muitos livros para ler. Fiquei feliz com meu presente: a figura de uma bicicleta. De noite, apaguei a lamparina e sonhei com meu Natal: montado na minha “bicicleta”, fui ao encontro de Papai Noel. Ele me perguntou o que eu queria. E eu respondi que queria de presente uma resposta à minha pergunta: “Você conhece as crianças pobres do Brasil?”


Elba GGomes