Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Crônica sobre a II Flipiri, de Rosângela Vieira Rocha

 

De livros e de estrelas

 

Rosângela Vieira Rocha*

 

 Ladeando o tapete vermelho, aos gritos de "Eliane, Eliane", a multidão aguardava na entrada do Cine Pireneus, levantando o abano com a foto da jovem belíssima, misto de Ingrid Bergman e Grace Kelly. A espera não foi longa, mas suficiente para que eu evocasse a visita de Juscelino Kubitscheck a Inhapim, minha terra, quando eu era criança. Senti uma emoção parecida e o mesmo arrepio eriçando os cabelos dos braços.

De repente, no início da rua fechada para o trânsito, surgiu Eliane Lage, a homenageada da II Festa Literária de Pirenópolis, Goiás, primeira atriz da lendária companhia cinematográfica Vera Cruz, hoje uma senhora idosa, vestida de maneira muito simples, que ainda conserva o porte majestoso e a firmeza de quem foi criada ao ar livre. Acompanhava-a o Secretário de Cultura de Pirenópolis, Gedson de Oliveira, e Iris Borges, da Arco-Íris Distribuidora de Livros e coordenadora do grupo Casa de Autores. Na entrada, o escritor Ignácio de Loyola Brandão esperava a insigne dama, para conduzi-la ao cinema, onde logo depois iria saudá-la, com sua oratória original e bem-humorada.

Ao entrar no auditório, Eliane foi presenteada pelo Prefeito da Cidade, Nivaldo Melo, com uma placa comemorativa. Tive vontade de ler o que estava escrito nela, mas não tive oportunidade de fazê-lo.

Algum tempo antes, havíamos assistido ao filme "Sinhá Moça", estrelado por Eliane e Anselmo Duarte. A fotografia é belíssima e o desempenho dos atores formidável. Pena que o som do DVD estivesse tão ruim, realmente inaudível. E ainda nos demos ao luxo de contar, na sessão, com a presença sempre estimulante do cineasta Vladimir Carvalho.

Naquela memorável noite de 13 de março terminava a II Flipiri, que começou oficialmente no dia 11, embora vários escritores do grupo Casa de Autores tivessem iniciado as atividades no dia 10, que incluíam visitas a escolas na área rural, para contar histórias e conversar com as crianças sobre livros e leitura.

Não é fácil falar sobre Eliane, que teve e continua tendo várias vidas em uma só, tal a diversidade de suas experiências. Para começar, nasceu em Paris e passou a infância numa pequena ilha da Baía da Guanabara, de propriedade de sua família, acompanhada apenas por uma severa governanta inglesa e uma infinidade de pássaros.

Quase foi adotada oficialmente por Yolanda Penteado, conviveu com a alta sociedade, à qual pertencia, brilhou como atriz e deixou o cinema ainda jovem, por que quis. Teve uma série de atividades, foi guia de turismo, professora, trocou experiências com religiosos como Dom Pedro Casaldáliga, a quem ensinou Português, com Dorothy Stang, a freira assassinada em 2005, foi fazendeira e, na maturidade, adotou Pirenópolis como sua cidade. Eu precisaria de algumas centenas de páginas para contar a sua história. O que seria perda de tempo, pois ela mesma o fez com fluência e habilidade, no livro "Ilhas, Veredas e Buritis", prefaciado por Ignácio de Loyola Brandão. Acrescente-se a tudo isso o fato de Eliane ser fisicamente muito parecida com minha avó Júlia, embora esta fosse mais morena.

Na noite anterior, o laureado acadêmico Moacyr Scliar falou sobre Literatura e Cinema, com a calma e a serenidade que lhe são peculiares. Aliás, quando comentei com um grande amigo, o escritor Menalton Braff, que Ignácio e Moacyr compareceriam à II Flipiri, ele disse que eu estaria em ótima companhia, pois "o primeiro é o escritor mais generoso da literatura brasileira e o segundo é o grande cavalheiro das nossas Letras". A mesma opinião foi expressa, em outras palavras, pelo escritor e tradutor Chico Lopes, residente em Poços de Caldas.

Nos demais dias, os vinte e dois autores que compõem o grupo Casa de Autores participaram de oficinas, debates, contaram histórias, fizeram palestras, lançaram livros. André Neves, escritor e ilustrador pernambucano, foi um dos convidados da Festa. A editora Miriam Gabbai, do Instituto Callis, falou aos professores sobre o uso da biografia na sala de aula. Um grupo de escritores de Goiânia, coordenado por Luiz de Aquino, discutiu gêneros literários. Participaram também, como era de se esperar, autores da própria cidade.

Dei várias oficinas para adultos e crianças, li contos, discuti histórias, propus que os participantes escrevessem novos finais para algumas delas, mas, um encontro, em especial, me marcou muito: levada pela fotógrafa Ana, ótima motorista, habituada a atravessar riachos e dirigir em estradas de terra, fui ao povoado de Santo Antonio, distrito de Pirenópolis, visitar uma escola onde os alunos tinham lido o meu livro infantil "A festa de Tati". Tenho muito carinho por esse livro, lançado em 2008, o primeiro que escrevi para crianças, cuja personagem principal é uma menina com necessidades especiais.

Chegamos atrasadas e havia muitos meninos à nossa espera, alguns acompanhados dos pais e parentes próximos. Para me receber, alunos e professores haviam montado uma espécie de representação da história, com cenário de festa de aniversário, balões pendurados, bolos de velas, salgados e doces etc. Qual não foi minha surpresa, susto mesmo, quando vi que a menina que fazia o papel principal era portadora de necessidades especiais, como a Tati. Com um vestido em tom carmim, a comprida saia rodada, cabelos cheios de cachinhos, a linda Alana estava sentada numa cadeira, no centro da varanda que servia de palco, enquanto uma aluna atuava como narradora. Havia até uma menina vestida de anjo, que é apenas mencionado no livro. À medida que o conto evoluía, alguns alunos repetiam as falas das pe rsonagens.

Fiquei olhando muito tempo para a Tati, ou seja, Alana, enquanto pensava que uma leitura tão literal e ao mesmo tempo tão espontânea dificilmente ocorreria numa escola de uma grande cidade. Provavelmente as pessoas teriam medo de resvalar no mau-gosto ou no "politicamente incorreto". Em Santo Antonio, não: orgulhosa de ser a rainha da festa, Alana exibia o seu melhor sorriso, de dentes claros e curtos. Estava deliciada, aliás, estavam, ela e sua mãe, que também tem necessidades especiais. A mãe levou dois bolos, feitos por ela mesma, em formato de coração, e no final do encontro agradeceu minha presença, usando microfone e tudo. Alana apagou as velinhas, como a Tati, e no final até eu, a autora, confundia as duas, a menina e a personagem.

Um tio de Alana, com mãos de quem labuta na roça, tirou fotos dela comigo, explicando que eram para o álbum da sobrinha. Depois alguém tocou uma música sertaneja dedicada a mim, conversei com alunos, pais e professores, sempre com Alana rindo, agarrada à minha cintura.

Como tenho facilidade para chorar, tive de me conter naquela tarde. Mas chorei grandes lágrimas para dentro, ao ver como a inclusão, tema tão em voga atualmente, pode ocorrer com naturalidade e alegria. Alana não é discriminada na escola, aquela tarde representou o seu momento de glória, ela foi a estrela da festa. Para ver isso de perto, ainda que fosse só isso, já teria valido a pena escrever o livro.

Na volta, pensei o tempo todo na menina, e agradeci em pensamento ao editor Fernando Franco, que teve a sensibilidade de dimensionar o potencial da Tati e de acreditar em mim, me dando a oportunidade de iniciar a carreira de escritora de livros infantis.

Voltei de Pirenópolis com a certeza de que a II Flipiri, que deu um grande salto em relação à primeira, realizada em 2009, é fato consumado, veio mesmo para ficar e estimular a cultura e a arte do Centro-Oeste. Especialmente se continuar contando com o apoio de pessoas como as da atual administração da cidade, entre as quais se destacam o incansável Gedson de Oliveira, Secretário de Cultura, e a Secretária de Educação, Márcia Áurea de Oliveira, organizadora das oficinas na cidade e nos distritos, e com o patrocínio dos órgãos públicos e entidades estaduais e federais, é claro. O Sudeste tem a Flip. Por que a Flipiri não pode se transformar na Flip do Centro-Oeste?

Para isso, nenhuma cidade da região me parece tão apropriada quanto Pirenópolis, por sua infraestrutura e por suas características: onde mais encontraríamos um lugar que cheira a murta e jasmim, que tem gosto de biscoitos de queijo e rosquinhas de nata, colorida como o seu artesanato, brilhante como suas jóias de pedras e prata?

 

 

 

*Rosângela Vieira Rocha é escritora, jornalista e professora e membro do grupo Casa de Autores desde sua criação.

 

2 comentários:

  1. Lindo relato, Rosângela! Ler sua crônica me fez reviver muitos dos momentos incríveis passados em Pirenópolis. Está aí a grande magia da palavra escrita: só ela tem o poder de eternizar com tanta riqueza de detalhes o que não queremos correr o risco de deixar apenas na lembrança!
    Parabéns!

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  2. Muito bonita, Rosângela! Seu Saturno-Netuno no melhor estilo. :)

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