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quinta-feira, 8 de abril de 2010

Jornal "Hoje em Dia", de 06.04.10,

 

 Hoje em Dia

   Manoel Hygino dos Santos

Autor e personagem

 
Nada mais emocionante do que o autor encontrar o personagem de sua ficção, o ser que imaginara para um conto, novela ou romance, na via pública ou em alguma casa ou bar, nalgum antro ou numa festa de alta sociedade. O fruto da imaginação existe, não era invenção.
Dentre o que li, e muito já esqueci, me impressionou especialmente "O sósia", um dos romances menos importantes de Dostoievski, mas não menos admirável, em minha opinião. Em São Petersburgo (que voltou ao nome original), ia o indivíduo, em noite fria, ao longo da Perspectiva Nevsky, uma avenida larga da imperial cidade, quando observou ser seguido.
Se diminuía o passo, o acompanhante também o fazia, como se o perseguisse. Se acelerava o andar, o estranho o repetia, e assim se desenvolveu a marcha noturna e soturna. Ao chegar à casa em que morava, o personagem deixou-se ser ultrapassado. Aliviado, ingressou na sala, e deparou o estranho seguidor: era ele mesmo, o indivíduo que o seguira ao longo da Nevsky. Uma sucessão de cenas de suspense e expectativa, que haverá de tanger o coração do leitor impressionável.
Há personagens em busca de autor. Como a recíproca é verdadeira.
A escritora Rosângela Vieira Rocha, merecidamente premiada mais de uma vez, escreveu o livro infantil "A festa de Tati", contando a história de uma menina com defeitos genéticos, que despertavam reações diferentes entre as de mesma idade e os adultos. Tati é muito bem descrita.
Eis que foi, há pouco, a escritora a Pirenópolis, uma cidade goiana com tradição de cultura e arte, para participar de uma promoção literária. Lá chegando, visitou uma escola em que os alunos tinham lido o livro, o primeiro que fizera para crianças.
Chegou atrasada e havia muito meninos à espera, alguns acompanhados dos pais e parentes próximos. Para recebê-la, montara-se uma representação da história, com cenário de festa de aniversário, balões pendurados, bolos com velas a serem sopradas, salgados e doces.
A própria ficcionista revela o que sentiu em seguida:
- Qual não foi minha surpresa, muito mesmo, quando vi que a menina que fazia o papel principal era portadora de necessidades especiais, como Tati. Com um vestido em tom carmim, a comprida saia rodada, cabelos cheios de cachinhos, a linda alma estava sentada numa cadeira, no centro da varanda, que servia de palco, enquanto uma aluna atuava como narradora. Havia até uma menina vestida de anjo, apenas mencionado no livro.
Os sentimentos da escritora de Inhapim se aqueciam. Encontrara em vida a criança a que imaginara para sua estreia na leitura infantil. Como sósia de Dostoievski, deve ter-se perguntado: Quem é quem?
- Fiquei olhando muito tempo para Tati, ou seja, Ala na, enquanto pensava que uma leitura tão literal e, ao mesmo tempo, tão espontânea, dificilmente ocorreria numa escola de uma grande cidade. Provavelmente as pessoas teriam medo de resvalar no mau-gosto ou no "politicamente incorreto".
No entanto, era uma localidade do interior de um estado sem mar. "Em Santo Antônio, em Pirenópolis, não: orgulhosa de ser a rainha da festa. Alana exibia o seu melhor sorriso, de dentes claros e curtos. Estava deliciada, aliás, estavam, ela e sua mãe, que também tem necessidades especiais. A mãe levou dois bolos, feitos por ela mesma, em formato de coração, e no final do encontro agradeceu minha presença, usando microfone e tudo. Alana apagou as velinhas, como a Tati, e no final até eu, a autora, confundia as duas, a menina e a personagem."
Como Alana, ou Tati, agarrada à cintura, a ficcionista meditou sobre os caprichos da vida, suas contingência e circunstâncias. Teve de conter-se para não chorar. Percebeu que Ala na não era discriminada na escola e aquela tarde em Santo Antônio foi o seu momento de glória, a estrela da festa.
Concluiu: valeu a pena escrever o livro, reconhecido o mérito pelo editor, também sensível aos episódios do cotidiano, tão comuns às vezes, mas que tocam profundamente o coração.

 

 

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