Acordei hoje com a notícia da morte de Moacyr Scliar. Desde o dia 17 de janeiro, quando foi internado para retirar um pólipo benigno no intestino e teve um AVC no próprio hospital, venho acompanhando, com preocupação, as notícias sobre sua saúde.
No último dia 9 seus leitores e amigos agarraram-se à esperança: houve uma perspectiva de melhora, pensou-se até que a sedação poderia ser retirada. Que ele iria melhorar, enfim. Contudo, a situação acabou se complicando com o surgimento de uma infecção respiratória, levando-o à falência múltipla dos órgãos.
Nascido em Porto Alegre, formado em medicina, profissão que exerceu até o fim com grande humanidade, ele tinha 73 anos e publicou mais de 70 livros de diversos gêneros literários: romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio. Ingressou na Academia Brasileira de Letras em 2003 e ganhou o Prêmio Jabuti em 1988, 1993, 2000 e 2009.
Li vários de seus livros, que tiveram grande influência na literatura de origem judaica (ele era judeu) e na literatura fantástica, e me emocionei especialmente com "O texto, ou: a vida - uma trajetória literária", de 2007, que é uma reflexão sobre a literatura de modo geral e de como, com sua força, ela foi entremeando-se na vida dele, como uma hera num muro.
Sobre Moacyr, o escritor Menalton Braff, meu amigo, disse que ele era "o príncipe dos escritores brasileiros", por sua elegância, sua postura, a finura de seus gestos, sua calma e sua dignidade. Por experiência própria, sei que ele respondia a todos os escritores que lhe escreviam, embora recebesse cartas do Brasil inteiro, de centenas de escritores. Não fazia distinção entre famosos e iniciantes, lia tudo e comentava os livros, sempre com um olhar generoso, buscando realçar o que havia de positivo nas obras, estimulando, dando força.
Enviei-lhe meu primeiro livro, meio com o coração na mão diante de um escritor de sua magnitude, e ele me mandou uma carta escrita à mão, que guardo como uma relíquia.
Somente no ano passado é que o conheci pessoalmente, durante a 2ª Feira Literária de Pirenópolis, Goiás, à qual compareceu, a convite da agente literária Iris Borges, uma das organizadoras do evento. Embora o contato com ele tenha sido muito breve, pudemos trocar algumas ideias, já que estávamos hospedados na mesma pousada. Pedi que autografasse alguns livros que levei especialmente para isso, o que ele fez às 5 horas da manhã (como ele ia viajar muito cedo, deixei os livros na portaria). Quando acordei e o rapaz da pousada me devolveu os exemplares, senti que tinha em mãos algo muito precioso.
Na véspera, ele tinha feito uma palestra na Feira, com sua voz pausada e discreta. Seu rosto revelava alguns sinais de cansaço, depois de ter feito longa viagem, de Porto Alegre ao interior de Goiás.
Serei sempre grata a Iris Borges por ter promovido a participação dele na Feira, pois só assim pude conhecê-lo e entender a razão pela qual recebeu a alcunha de "príncipe dos escritores brasileiros".
A única ideia que me consola nesse momento é imaginar a chegada de Moacyr Scliar ao paraíso. É muito provável que, nesse momento, Santa Teresa D'Ávila, grande escritora, esteja cochichando com San Juan de la Cruz:
- Temos novo companheiro, Juan.
- Ah, é? Veio de onde?
- Do sul do Brasil. Seu nome é Moacyr Scliar.
- Você já convocou os músicos?
- Claro. Todos estão a postos para a cantoria começar. O coral dos arcanjos e dos querubins está se preparando há dias, ensaiando sem parar, para a recepção.
Na enorme praça central do paraíso, todos os escritores e leitores já formam uma compridíssima fila à espera dos autógrafos, que serão feitos com uma caneta de ouro, presente de um dos serafins. É assim que vejo Moacyr agora, sempre perto de Santa Teresa D'Ávila e de San Juan de la Cruz, comendo ambrosia e ouvindo cantos celestiais.
Rosângela Vieira Rocha