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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Uma luz que não se apaga


Foto: Paulo de Araújo

            Não nasci aqui, mas sou brasiliense. Ao acompanhar Brasília se construir como cidade, fui me construindo como sou hoje.
Normalmente, as pessoas estão ligadas a uma cidade por meio dos ancestrais, das famílias, da sua história individual desde o nascimento. No caso de Brasília, principalmente para minha geração, é diferente. Nós nos ligamos à cidade em que vivemos por opção, por um vínculo simbólico genuíno, autêntico, voluntário. Em algum momento de nossas vidas escolhemos viver aqui e passamos a nos sentir mais de Brasília que de qualquer outro Estado. E essa escolha se renova todos os dias. Mesmo tendo passado os anos dourados da minha adolescência em Belo Horizonte, e embora ame uma Minas Gerais que está mais no meu imaginário que na realidade, não consigo mais me reconhecer como uma mineira.
Entretanto, esse vínculo com Brasília não foi imediato. Em 1965, quando cheguei aqui, naquele julho frio e empoeirado de um talco vermelho, meu coração dilacerado de saudades se recusava a encontrar aconchego na paisagem horizontal. Eu procurava, sem encontrar, as encostas de Minas, os horizontes de Minas, os mistérios das serras indevassáveis. Mas aqui a linha do pôr do sol era desnuda, extravagante, aberta ao infinito. Como se a vida se oferecesse descarnada de obstáculos, como se o espectro de opções para o que viria estivesse inteiramente exposto, como se todos os caminhos estivessem disponíveis e se mostrassem sem subterfúgios.
Minha melancolia inicial e meu recolhimento foram pouco a pouco se iluminando com esse sol desinibido e franco. E fui aprendendo a amar o cerrado, a reconhecer suas cores, suas árvores, suas flores, seus pássaros, seus movimentos, suas cachoeiras escondidas. Deslumbrei-me com as surpresas da convivência com amigos vindos de lugares tão diversos, com sotaques tão exóticos para meus ouvidos caipiras, com interesses tão diferentes e múltiplos.
Na minha turma de segundo grau encontrei o Brasil e a vontade – que nunca mais me deixou e que me mobiliza ainda – de conhecer mesmo o meu País. O colégio de freiras era um catálogo de falares e de costumes que tornava a rotina escolar uma seqüência saborosa de descobertas. Sorvete na Pigalle, namorar na fonte sonora e luminosa em frente à Torre, pizza no Casebre ou no Roma, doces da confeitaria Flamingo, volta turística ao lago com parada obrigatória na Ermida – tão longe – tão perto, chá dançante nas tarde de domingo na Torre, Congressinho, Iole, Gilberto Salomão, festa dos Estados, cineminha no Bruni, Cultura ou Escola-Parque.
Depois a Universidade, próxima, acolhedora, convidativa, amigável e ao mesmo tempo catalisadora de tudo o que deveríamos aprender sobre a repressão e a truculência do arbítrio. O fim da inocência social e as experiências inaugurais da cidadania e da política. A consciência da ética. Os primeiros amores e os que viriam no futuro, as primeiras perdas – os amigos desaparecidos, os primeiros sucessos, os primeiros fracassos, as primeiras decepções, os livros fundamentais, os primeiros sonhos e esperanças compartilhados. E o mitológico Beirute: testemunha-cúmplice de paixões arrasadoras, flertes, mortes e ressurreições do amor, casamentos e separações, finais e recomeços.
Não sei bem quando, nesses anos de juventude, eu fui me desligando de tudo o que ainda me prendia à infância remota e abraçando o novo, o desafio, a indagação sobre o futuro, o questionamento do mundo. Essa amplidão mais norteadora que desnorteadora, essa claridade estonteante, essa infinitude que se oferece ao olhar e ao pensamento, moldam uma alma ávida e sempre disposta ao novo. Adotar Brasília como minha cidade misturou-se com definir os rumos da vida, fazer outras escolhas fundamentais, descobrir afinidades intelectuais, abandonar velhos esquemas mentais, mergulhar no mundo dos livros (o Instituto Nacional do Livro tinha um ônibus biblioteca!), abrir o coração para a música brasileira, para a nossa literatura e para a nossa arte e nossa cultura multifacetada, aceitar um vasto mapa de caminhos muito mais abertos, incertos e estimulantes que um percurso preestabelecido e seguro. Tudo está enraizado naquelas manhãs ensolaradas nos gramados da UnB; naquelas dúvidas, naquelas indagações, na insegurança motivadora dos anos jovens, na sua perplexidade esclarecedora.
E então veio o trabalho, minha primeira sala de aula numa cidade-satélite. Os contrastes e as injustiças sociais, que se perpetuariam e se acentuariam nesta cidade-espelho do Brasil, já estavam colocados para mim, mal saía da adolescência. As reflexões e as decisões assumidas no interminável trajeto diário da asa sul para o Gama, naquele ano emblemático de 1968, galvanizaram um destino inarredável de educadora, que nunca me abandonou. Mais que nunca “o passado e o futuro convergem a um ponto que é sempre presente”.
Todos os dias, na sala de aula, nas palestras, nas reuniões de trabalho, ou quando venho para o computador produzir meus textos, vem comigo aquela menina de dezessete anos que acordava de madrugada, deixando para trás a doce despreocupação burguesa, para ir, cheia de sonhos, esperanças, coragem e entusiasmo, encontrar seus alunos na escolinha de madeira encravada na terra vermelha, perto do hospital do Gama.

Lucília Helena do Carmo Garcez
Doutora em Linguística e escritora. Professora aposentada da UnB.
luciliagarcez@terra.com.br 

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