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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A história de L.

Foto: Ratão Diniz


L. nasceu numa pequena cidade do interior de Minas em 1919. Hoje completaria 90 anos, se fosse viva. Era a terceira filha de um casal que já tinha dois rapazes e que, depois dela, veio a ter mais uma menina. Os dois casais de crianças não usufruíram a mãe por muito tempo. Doente, ela veio a morrer quando L. e seus irmãos eram bem pequenos. Naquele tempo, não se usava um homem sozinho criar filhos. Com poucos recursos e tendo que trabalhar muito, o pai de L. pediu a uma cunhada, irmã da falecida, que cuidasse dela pelo menos por um tempo, até arrumar outra esposa capaz de assumir a família ao lado dele. Os outros filhos foram entregues em casas de outros parentes, até que as coisas se ajeitassem para o viúvo.

Demorou alguns anos até que ele encontrasse uma noiva. A que veio não estava muito disposta a criar filho dos outros. Além dos mais, os meninos já se acostumavam com as novas famílias onde já vinham passando os anos da infância. Daí que o pai de L. se casou de novo, teve outros filhos com a nova mulher, mas não levou de volta para casa os quatro mais velhos. L. mesmo não estava nem um pouco interessada na nova mãe. Vivia na casa da tia, era tratada como irmã pelos primos. E olha que a casa era cheia. Os tios tinham muitos filhos. Da idade de L. nenhum. Ela ficava no meio, entre o mais velho e o segundo. Depois deles viriam, com o passar dos anos, mais sete. Todas mulheres. E L. virou uma irmã mais velha para as meninas. Aplicada na escola, ajudava os primos no dever de casa e nos afazeres domésticos. Embora de temperamento um pouco contido, divertia-se com aquele monte de gente alegre.

Mocinha, L. era moderna. Usava calça comprida – não em qualquer ocasião, mas, por exemplo, quando o grupo ia passear com amigos pros lados da cachoeira que havia fora da cidade. Tudo familiar, sem ousadias nem indecências. Afinal, eram todos religiosos e bem-comportados. Nas festinhas da igreja e nos passeios pela praça conheceu M., por quem logo se encantou. Ele era inteligente, alto e bonito, o que muito agradava L. porque ela também era mais para alta. Não queria namorar baixinho e fazer feio. Gostava de usar um saltinho e a companhia de M. permitia isso. De boa família e trabalhador, M. se mostrou o candidato ideal a bom partido – ainda que seu humor nem sempre fosse dos melhores, com propensão ao ciúme, o que, antes de preocupar L., lhe dava uma ponta de orgulho. De modo que a tia e o tio fizeram gosto no romance entre ele e L. Eles próprios comunicaram ao pai de L. que ela tinha um pretendente. Todos ficaram satisfeitos, porque, mesmo cursando o normal, o que lhe possibilitava a profissão de professora, o melhor futuro para uma moça de família era se casar e ter filhos. Ser mãe e dona de casa.

Foi o que sucedeu nos anos seguintes. No início dos anos 40 L. e M. se casaram ainda no interior. A estabilidade da vida de casado, no entanto, não acalmou as variações de humor de M. Aos poucos, o que eram ciuminhos começou a se mostrar algo mais irracional. M. se alterava facilmente, por qualquer bobagem. E com qualquer pessoa. Com L., naturalmente, por estar mais perto. Era o comprimento da saia, era o penteado do cabelo (deu de achar ruim até a permanente que ela fazia no cabelo e que tanto o atraía nos tempos de solteiros), era a cor do café, era o hábito dela de cantarolar baixinho. Fora de casa, também, os maus modos de M. se acentuaram rapidamente. Brigava no serviço, no comércio, na rua. Os primos chegaram a comentar en passant com L. que o amigo tinha mudado muito. Não era mais o boa praça de antes.

A gravidez de L., de um filho tão desejado pelo casal, não melhorou as coisas. Da extrema felicidade pelo momento de completude à irritabilidade com as coisinhas de grávida, como enjoos, desejos e a perda de roupa que não mais cabia, as reações explosivas e inesperadas de M. passaram a apontar algo de doentio. Algo havia, mas L. não conseguia se dar conta do que fosse. O nascimento do filho não só não contribuiu para acalmar as coisas, como acrescentou mais um elemento de tensão para L. Ela temia o que pudesse vir do marido descontrolado se o menino chorasse à noite, fizesse xixi e cocô vezes sem conta, como é próprio dos bebês, regurgitasse golfadinhas como faz qualquer criança saudável.

E era o que acontecia. Percebeu que seus temores não eram infundados num dia em que M. gritou diante do chorinho do neném e partiu para cima dele, com as mãos abertas rumo a uma palmada inaceitável – não num ser de poucos meses de idade. Mais que depressa ela se interpôs entre o agressor e a vítima em potencial, gritou mais alto que os dois e, tal qual uma leoa ou outra fêmea animal que age apenas por instinto, ameaçou-o com a voz mais grossa de que seria capaz:

– Se tocar um só dedo no meu filho, te mato!

Ele reagiu ao susto na hora. Baixou a mão, baixou a cabeça, saiu do quarto, saiu de casa. Ela pegou o bebê no colo, correu até a casa da tia e pediu ajuda a primos, primas e maridos de primas. Queria que fossem com ela até a casa, ajudassem-na a fazer as malas e a catar suas coisas e as da criança. Quando M. voltou para casa naquela noite, não encontrou mulher, filho, nada. Apenas um bilhete no qual L. avisava que o estava deixando e pedia que ele não a procurasse mais, a não ser que aceitasse se tratar, porque o que ele tinha só podia ser doença.

M. ainda tentou procurá-la para conversarem. Queria dizer o quanto a amava, que não entendia aquelas súbitas perdas de controle emocional, que estava disposto a mudar por amor a ela e ao filho. Ela, ainda assustada e com medo, não quis ceder. Ele então fechou a casinha onde moraram por tão pouco tempo e voltou para a casa dos pais e das irmãs. Só que lá as coisas não melhoraram. Revoltado com o abandono da esposa, M. dava ataques cada vez mais frequentes. Até que brigou no serviço e perdeu o emprego, o que levou suas irmãs a convencerem os pais a chamar um médico especialista. E foi então que o psiquiatra diagnosticou esquizofrenia. Remédios não continham mais os surtos de M. Ele teve que ser internado no manicômio de Barbacena, onde veio a passar décadas de sua vida, até morrer de velhice aos cinquenta e poucos anos.

L. passou uns tempos na casa dos tios. Mas não queria ficar por perto, sujeita às abordagens de M. Decidiu então mudar-se para a capital. Lá, com um dinheirinho que seu pai lhe mandava regularmente, trabalhou uns tempos de professora primária enquanto uma empregada de confiança a ajudava a cuidar do filhinho. Antenada, descobriu que podia fazer concurso público e, inteligente e esforçada, logo passou num para o governo. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como servidora federal. Certa época, quando os tios e primos já moravam todos em Belo Horizonte, pediu transferência para uma repartição na capital de Minas. Sentia-se sozinha no Rio, ela e o filho.

O menino cresceu bonito e inteligente, mas L. sempre temia que o gene ruim do marido vingasse no filho. Aparentemente, era um temor infundado. Ele era alegre, sem variações de humor. Mas ela sabia que a falta do pai, ou mesmo de uma figura masculina de referência, ainda se faria sentir. E foi o que sucedeu no início dos anos 60, quando o rapazote conheceu o pessoal da organização de direita que agitava bandeiras em defesa da pátria, da família, da religião e da propriedade privada, em oposição aos movimentos de esquerda que também pipocavam na época. Aos quinze anos, o filho seguiu caminho com os novos amigos da organização. Por mais que ela pedisse que ele não a deixasse só, não houve meio. Ele se sentia com uma missão, e apto a encará-la. E foi em frente.

L. não era de lamúrias nem chorumelas. Achou ruim – péssimo – o filho se emancipar tão cedo, mas manteve sua vida de funcionária pública zelosa. Foi por essa ocasião que o governo começou a oferecer vantagens a quem se interessasse em mudar para Brasília, onde as oportunidades de emprego, os cargos e as comissões, pululavam. Sem nada a perder ou a deixar pra trás, L. aceitou a transferência. O salário era tão bom que lhe permitiu, pouco depois, aposentar-se no teto da carreira e desfrutar de boa remuneração. Só não passava a inquietação. L. então, depois de viver mais de dez anos na nova capital federal, resolveu morar em São Paulo uns tempos, para ficar mais perto do filho – nessas alturas, ele, com seu brilho e carisma, já era dirigente da organização da qual fazia parte. Na capital paulista L. se sentiu mais só do que nunca. O filho não tinha tempo para ela. Fora visitá-la com mais frequência quando ela morava em Brasília ou em Belo Horizonte do que nos tempos em que partilhou com ele a mesma cidade.

Daí que L., velha e independente, decidiu que moraria onde lhe desse na telha. Voltou para Belo Horizonte, para perto das primas e dos filhos das primas, entre os quais tinha afilhados. Quando soube da morte de M. no sanatório, voltou mais uma vez para Brasília, mas o clima não lhe agradava. Experimentou o Sul de Minas, o frio a incomodou. Por fim, adotou o Rio, a cidade mais bela e agradável entre as que conheceu e pelas quais arrastou sua solidão.


L. ficou velha e surda. Era lúcida, gostava de ler os jornais e ver o noticiário na televisão. Mas, à medida que perdia a audição, menos comunicação tinha com o mundo. Se já não colecionava amigas nem relações, sem a audição acabava por se isolar mais e mais. Por causa da decadência física, achou melhor trocar o apartamentinho onde morava por uma casa de repouso, uma instituição que cuidava de idosos. O custo era alto, mas o filho a ajudava a se manter, com assistência de enfermeira,

nutricionista, cuidadores profissionais. E o lugar compensava tudo: no alto de uma pedreira, em Copacabana, entre a favela e a parte chique do bairro mais famoso da capital fluminense, com a vista ampla da Baía de Guanabara e do vasto oceano de cor indecifrável. Foi ali que L. morreu, sozinha, sem ligação com o mundo, sem dizer adeus a ninguém e sem ouvir de alguém uma palavra.

Clara Arreguy

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