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terça-feira, 20 de agosto de 2013

A língua como substância lúdica

Foto: Pedro Martinelli

Desde a pré-história, quando o ser humano diferenciou-se dos animais pelo desenho e pela invenção da linguagem, vem colocando todos os materiais disponíveis a serviço da sua inteligência, engenho, criatividade, comunicação e expressividade. Pedras, resinas, madeira, conchas, contas, sementes, fibras, metais, penas, sons, movimentos corporais, palavras deixam seus fins utilitários. A inquietação humana retira a matéria de seu lugar de origem e transmuta sua função, criando elementos de entretenimento e manifestação expressiva. Deslocados de sua natureza original, esses adotam novas funcionalidades, novas configurações e ecoam novos significados.

Marcel Duchamp alertou o homem do século XX para o que parecia óbvio, mas até então não tinha sido percebido com clareza: “A arte é um olhar amoroso sobre a vida”. Os objetos, desnaturalizados, retirados de seu ambiente natural provocam um estranhamento que é próprio da experiência estética. Assim também ocorre com a linguagem. As palavras abandonam sua função comunicativa e referencial imediata e penetram no mundo da polissemia, da metáfora, dos segundos sentidos. Transformam-se pela densidade que vai sendo agregada aos seus sentidos originais.

As crianças, desde que começam a descobrir a linguagem, são fascinadas pelo seu mistério e pelas suas potencialidades lúdicas. Inventam parlendas, trava-línguas, jogos e línguas secretas. A substância sonora da língua é um brinquedo. Quando transgredimos a ordem canônica, quando inauguramos uma opacidade nesse instrumento que, no quotidiano, busca transparência e referência, chamamos a atenção para suas inusitadas possibilidades e abrimos um horizonte de novos paladares, novos prazeres, novas sensações intelectuais.

A língua não se presta apenas para a comunicação, nem é transparente de forma satisfatória para a transmissão fiel de um pensamento. Em suas dobras, em seus meandros, provocando flexões inesperadas, multiplicamos suas fronteiras e trazemos maior densidade e efetividade à ideia e às emoções que queremos transmitir. No dia a dia, na nossa linguagem oral informal, exageramos muito no uso de recursos que estão disponíveis no sistema e até mesmo transgredimos o sistema para alcançar maior expressividade

Queremos tornar nossas ideias mais claras e nossos sentimentos mais evidentes. Exploramos os sons da língua por meio de onomatopeias, como se fizéssemos parte de uma história em quadrinhos: Hummmm! Tbum! Cresh! Catapum! Brouummm! Vroumm! Splash! Poc poc! Toc toc!

Repetimos frases da sabedoria popular que se transformam em filosofia de vida: Nada como um dia depois do outro! Nada como o tempo para passar! Deus ajuda a quem cedo madruga! Quem cala consente! Invertemos a sintaxe direta para despertar novos significados: Trabalho ele não quer! Repetimos para despertar a atenção de nosso ouvinte: Entendeu? Compreendeu? Tá? Né? Viu? Respondemos à fala do interlocutor com ênfase em exclamações exageradas e cheias de segundas intenções: É mesmo? Verdade? Não acredito!!! Nossa! Credo! Os nossos qualificativos extrapolam a morfologia: chiquitíssimo, estranhésimo. Pequenas frases ampliam sua possibilidade de significação e avançam sobre campos surpreendentes: Fala sério! Não é brinquedo não! O amor é lindo!

Misturamos palavras de outras línguas na nossa frase. No nosso dialeto familiar e regional reduzimos as palavras ao mínimo e nos fazemos compreender de forma quase que telepática:

Na margem de um rio, dois pescadores mineiros preparam o café:
- Po pô o pó?
- Pó pô, pó pô poquim pra não cabá o pó.

Distorcemos a pronúncia para brincar com os sentidos: Faiz Pa[r]te! Graaannnde! É véi! Hiperbolizamos os itens gramaticais para acentuar um sentido especial: Ele é “o” artista! Riu “de” mim ou riu “para” mim? Ontem você “ficou” com quem? Você já “assumiu” a moça? “Quem” respondeu? “Você” respondeu? Nem eu!

No universo da literatura, estamos acompanhados de grandes mestres transgressores. Os poetas modernistas redescobriram o Brasil por meio da língua brasileira: “Se havemos, pois, de só escrever certo portuguesmente, escrevamos errado mas brasileiramente, isto é, como fala o nosso povo.” (Cassiano Ricardo, "O homem cordial"). Oswald de Andrade denunciava em seu poema Pronominais:

“Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.”

Mario de Andrade construiu uma língua pessoal e artística, pelo processo de colagem e combinação dos falares brasileiros, que usou nos romances e na vida real: “Que mundo de bichos! Que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas os morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha, branquíssima, de certo a filharada da mandioca.” ("Macunaíma", p. 51) “E fica muito pau pra mim estar de agradandinho por cartas subterrâneas.” ("Cartas a Alceu"...,p.45)

Mas quem celebrizou-se por brincar com a expressão verbal, radicalizando a liberdade de despertar novos limites para as palavras, ao explorar-lhes a sonoridade e as possibilidades morfológico-semânticas, foi Guimarães Rosa: “E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. (Tutameia, p.104). Hoje em dia, nas vertentes abertas pelo modernismo, João Ubaldo pode exercer seu talento ilimitado. Podemos usar e abusar da língua e dizer que mesmo assim: “... esmurrando e mordendo o ar, com ferocidade, que nada, nada, nada, nada, nadinha de nadíssima, nadissimizíssima, pode acontecer com ela...” que a prejudique, restrinja ou diminua. (fragmento adaptado de "Viva o povo brasileiro", p.371). A língua está viva e por isso reage e se submete, sofre e cresce, modifica-se e amplia-se.

Não se trata de pretensão literária. Queremos explorar a linguagem, usar ao máximo os seus recursos de produção de sentidos, queremos nos expressar da maneira mais intensa. Para isso, muitas vezes, massacramos o sistema estabelecido da língua, pois como diz Luis Fernando Verissimo: “A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda” ("O gigolô das palavras").


Lucília Garcez é ex-professora da UnB e escritora, autora de “A escrita e o outro” – UnB, 1998; "Técnica de redação", Martins Fontes – 2001, e "Explicando a arte", Ediouro - 2001.

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