Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Betes!



“Vou morrer”.
Mas este foi meu segundo pensamento.
A primeira coisa que me veio à mente foi “Ainda existo!”
E o espanto por ainda existir.


O primeiro teste foi bastante simples: projetamos a microcâmera cinco minutos para o futuro, ela permaneceu lá por alguns centésimos de segundo e retornou, trazendo uma foto da parede de fundo do laboratório.  Mais precisamente, ela trouxe do futuro a imagem, previamente definida, que projetamos a partir do quarto minuto. 

Décadas de estudo e quilômetros de equações, e finalmente o teorema basilar da Teoria Unificada das SuperCordas foi provado: era possível, efetivamente, navegar em curvas hipostasiadas pelas soluções de Gödel.  E mais: como Jules Boltzmann, o físico-chefe do CBPF[1], previra, a navegação se dava em sentido oposto ao previsto inicialmente, ou seja, navegava-se para o futuro, e não para o passado.

Desnecessário dizer que foi o evento científico mais divulgado pela mídia e mais acompanhado de manchetes sensacionalistas de que se tem notícia. Mas a equipe de Boltzmann estava focada demais nos próximos passos para prestar atenção nesses detalhes.

E o próximo passo foi justamente tentar validar os postulados de Dolfinger sobre a possibilidade de paradoxos, e a consequente possível construção de um outro universo, com um encadeamento diferente. Boltzmann acreditava firmemente que os paradoxos eram possíveis, mas tanto ele quanto o resto de sua equipe – da qual tive orgulho de participar – acreditávamos em uma abordagem ligeiramente diferente sobre os efeitos resultantes dos paradoxos temporais.

O teste correu em duas etapas. 

Na primeira etapa, a microcâmera foi enviada novamente para o futuro, e trouxe de volta uma sequência de dez fotos de imagens que foram aleatoriamente escolhidas e projetadas pelo computador do Centro. Quando, cinco minutos depois, a câmera apareceu dentro do campo de contenção e o computador sorteou e projetou as mesmas dez imagens a partir de um conjunto de cerca de sete bilhões de imagens possíveis, ficou provado que a estrutura temporal tende a evitar paradoxos.

Na segunda etapa, a microcâmera foi projetada pela terceira vez ao futuro e retornou novamente com dez imagens. Rapidamente, a equipe retirou a câmera da zona de projeção e a ligou ao computador, que removeu as dez imagens do banco de imagens. Quando a câmera apareceu, vinda do passado, o computador apresentou uma nova sequência de imagens, deixando a câmera retornar ao passado com imagens diferentes das que havíamos conseguido cinco minutos antes. No presente, nesse mesmo instante, as imagens armazenadas na câmera passaram a ser as novas imagens.

Nossa equipe festejou muito mais esse segundo teste, pois na verdade o primeiro teste apenas anunciara para o mundo o que já fazíamos há vários anos com táquions, depois com grupos de átomos, depois com nanoconstructos.

O segundo teste, para nós, comprovava que toda a linha de trabalho que vínhamos seguindo há anos era válida, e abria todo um novo horizonte possível de experimentos: se o contínuo de tempo-espaço era flexível e se ajustava às mudanças, poderíamos usar isso a nosso favor!

***

Por motivos diversos, desde o alto custo dos experimentos até o protesto de grupos fanáticos que apregoavam que nossas experiências levariam ao fim do mundo, a próxima projeção demorou quase um ano para ser autorizada. 

Boltzmann em pessoa fez questão de apertar o botão que projetava a microcâmera cerca de dez anos no futuro – o tempo máximo que conseguíamos até então – e a mantinha lá por quase vinte segundos, consumindo energia suficiente para iluminar uma pequena cidade por um mês.

Como planejado pelo físico, a câmera retornou com uma quantidade imensa de informação, enviada pela contraparte futura de nossa equipe: todas as informações, incluindo equações, diagramas e fotos diversas das descobertas do CBPF nos próximos dez anos. Conforme o combinado com a equipe, todo o conhecimento trazido do futuro foi creditado aos seus respectivos futuros descobridores, incluindo diversos trabalhos de físicos que (ainda) não faziam parte da equipe, e mesmo de um estudante que ainda cursava o ensino médio.

O esforço para estudo e aproveitamento do trabalho começou imediatamente; e conforme projeto de lei aprovado meses antes, o dinheiro oriundo das patentes reverteu-se para o Centro até a data de sua descoberta futura, quando passaria então para o descobridor – ou para quem seria o descobridor, caso as informações não tivessem vindo do futuro.

A imprensa, a essa altura, tinha se focado nos benefícios imediatos das “maravilhas vindas do futuro” e em discussões éticas ou religiosas tendo como pano de fundo a viagem temporal; desistindo de qualquer tentativa de entender ou explicar a seus leitores os paradoxos envolvidos nessas viagens ou os detalhes éticos e legais do empreendimento.

Paradoxo ou não, foi o dinheiro dessas patentes que permitiu que Boltzmann criasse em menos de dois anos os protótipos das células de carbono de alta energia, o gerador de fusão controlada e o novo projetor de campo de distorção temporal, com tamanho e autonomia bem maiores que o utilizado nos primeiros experimentos.

E foi aí que tudo deu errado.

***

Na primeira execução, Boltzmann sugeriu que projetássemos um campo vazio, esperando receber algo do futuro. O contrato e as leis se mantiveram as mesmas, com a diferença que agora não receberíamos apenas informações, estando aptos a receber até mesmo modelos de invenções a serem criadas.  Em uma brincadeira estilo “bolão”, cada cientista anotou o que achava que poderíamos receber do futuro, e quem acertasse ou chegasse mais perto levaria o dinheiro apostado por todos. 

As apostas variaram desde “uma versão melhor do projetor de campo”, aposta do próprio Boltzmann, até “vacinas para doenças que iriam aparecer nos próximos anos”, de Fannete-Marie Shelley, francesa que se unira ao grupo no correr dos últimos meses, atraída por uma patente creditada a ela por um trabalho que ela ainda estava pensando em iniciar.

Mas ninguém esperava o que recebemos quando projetamos o campo por trinta segundos, a exatos vinte anos no futuro: quando o efeito fotoelétrico diminuiu e pudemos tirar os óculos de proteção, no centro da sala uma estranha criatura nos encarava, balançando lentamente o corpo e virando a cabeça de lado, enquanto piscava curiosamente os olhos multifacetados.

***

A seção do laboratório onde o campo era projetado era hermeticamente selada, e só foi aberta dois dias depois, quando um novo local para o bizarro ser foi preparado. Homens armados com bastões elétricos e armas, devidamente protegidos por trajes de proteção biológica, encaminharam o ser para um transporte e daí para a seção hospitalar que havia sido incrementada com uma área de isolamento total. A coisa seguiu passivamente, sem oferecer resistência.

A comoção gerada pelo aparecimento da criatura foi grande, e pressão da imprensa e da opinião popular forçou o Centro a paralisar todas as pesquisas até que desse uma explicação definitiva para o aparecimento do suposto animal.

A equipe isolou-se no Centro, então, concentrando seus esforços para decifrar aquela moderna esfinge.

***

A criatura, cujo pelo longo e rosa cobria todo o corpo, foi logo batizada de “Bete”, em homenagem à secretária do Centro, cuja obsessão por roupas e objetos rosa era notória. Os movimentos de seu corpo, em eterno balançar e com os longos braços sempre dobrados, com as mãos quase unidas, lembravam em muito os de um louva-a-deus. Era um bípede, quase se assemelhando a um primata na aparência geral, mas com olhos e um formato de rosto que evocavam um quê do reino dos insetos. Nas raras vezes em que emitia algum som, ele soava como uma série de estalidos gerados pela boca, sem participação da garganta.

Afora as óbvias diferenças externas, seu corpo era estranhamente humano, com pulmões, rins e alguns outros órgãos idênticos aos humanos. O coração era maior e batia cerca de duzentas vezes por minuto, e o cérebro avantajado e complexo sugeria capacidade cognitiva superior à dos primatas.  Estranhamente, o animal parecia assexuado, e alguns órgãos desconhecidos permaneciam inativos em seu corpo, o que levou a uma série de teorias, todas inconclusivas.

O diagnóstico ao fim de seis meses foi que o ser não carregava nenhuma doença e não representava perigo aos humanos. Além disso, era pacífico e obedecia ordens, o que levou a equipe do Centro a sugerir que provavelmente era algum tipo de ser geneticamente modificado para realizar atividades básicas para a sociedade do futuro.

Os cientistas estavam preparando uma apresentação do Bete aberta ao público em geral, para demonstrar que o ser era inofensivo, quando ele escapou, fugindo para o Morro do Pasmado, perto do Centro. Na fuga, ele matou sete pessoas, se movimentando em uma velocidade que as câmeras de segurança mal registraram.

Três meses de buscas infrutíferas depois, um grupo de uma dezena de Betes atacou uma igreja evangélica na favela da Rocinha, matando diversos fiéis e raptando outros tantos.

Um ano após o primeiro ataque, o Rio de Janeiro precisou ser evacuado.

Isso foi há quase dezenove anos. Desde então, a situação piorou em muito.

***

Nós, os remanescentes da equipe original de Boltzmann, com o apoio do que havia restado do governo, gastamos os últimos anos, e muitas vidas, criando e aperfeiçoando um homeotraje – uma roupa semelhante a um traje de mergulho, composta por nanoconstructos que mantêm sua superfície externa exatamente à temperatura ambiente. Como os Betes enxergam apenas na zona dos raios infravermelhos, basicamente ficamos invisíveis para eles. O traje se completa com borracha de alto impacto e isolamento acústico, na tentativa de nos deixar, também, inaudíveis para os monstros.

Com a queda final das linhas de comunicação e dos últimos resquícios de governo, restamos nós três, no laboratório escondido no pico das Agulhas Negras. Com o aproximar da data fatal, fizemos um sorteio, e restaram a mim o homeotraje e a missão suicida.

***

Meus colegas deixaram-me o mais próximo possível do Rio, trafegando por locais que sabíamos ser de pouco interesse para os Betes. Com um pouco de sorte, sobraram apenas algumas dezenas de quilômetros para eu percorrer a pé. A despedida foi calorosa, mas sem lágrimas. Não nos sobraram lágrimas, depois dos últimos anos.

Quanto mais eu me aproximava de Botafogo, mais lentamente eu precisava ir para não ser descoberto. Cheguei a passar um dia inteiro imóvel, escondido em um nicho, com medo até de respirar mais ruidosamente.  Felizmente, a maioria das criaturas dormia de noite, o que me dava uma boa liberdade de movimento com o homeotraje.

Mas mais do que medo, o que senti foi surpresa: os Betes eram muito mais organizados e inteligentes do que pensávamos. Abandonei imediatamente a ideia de que eles eram marginalmente inteligentes quando, escondido, vi pela primeira vez dois deles conversando, as línguas estalando em diversos tons enquanto os braços dançavam em gestos quase humanos.  Quando os vi utilizando instrumentos complexos, tanto alguns que deixamos para trás como outros que não reconheci, percebi que a humanidade estava fadada à extinção.

A menos que minha missão tivesse sucesso.

***

No dia e hora exatos, eu estava lá.

O laboratório do CBPF havia se tornado, aparentemente, o centro de algum tipo de culto dos Betes. As criaturas rosadas, algumas delas se destacando por faixas de pano finamente bordadas em torno da cabeça, circulavam lentamente entre as salas do antigo centro. Eu passara a última semana para conseguir chegar ao laboratório de projeção, e os últimos dois dias sem comer, esperando em um canto escondido.

Duas horas antes do momento certo, dez ou doze das criaturas entraram na sala. Como se soubessem o que iria acontecer – diabos, com certeza sabiam! –, sentaram em um círculo em torno da zona onde, em breve, seria gerado o campo de projeção que conectaria o presente com vinte anos atrás.

Quando faltavam quinze minutos, os Betes começaram a entoar um cântico exótico, enquanto um deles, que tinha uma faixa bordada à cabeça e outra à cintura, se levantou. Lentamente, a criatura removeu as faixas e se aproximou do centro do círculo, ficando à espera.

O cântico soou mais alto, e as criaturas pareceram entrar em uma espécie de transe. A seguir, a sala foi iluminada por um jorro de luz, quando o campo gerado pela minha antiga equipe se formou no centro da sala. O visor do capacete compensou o excesso de luz, permitindo que eu visse o que estava ocorrendo.

O Bete no centro do círculo cumprimentou os demais com um gesto ritualístico, dando um passo e entrando inteiramente na zona de projeção, que iria se desligar em mais vinte e cinco segundos.

Rapidamente, mas evitando barulhos, corri para o campo de projeção e estendi o braço até sua zona limítrofe. A interferência dos metais pesados do traje, como já sabíamos, fez com que o campo entrasse em colapso no momento em que a projeção iria se encerrar.

***

O brilho do campo flutuou e se apagou abruptamente, com um estrondo que indicava que um vácuo se formara na zona de projeção.

Imediatamente, Boltzmann sabia que algo dera errado. O vácuo só ocorreria se a porção do presente projetada para o futuro houvesse, por algum motivo, deixado de existir no presente.

Com efeito, ao retirar os óculos, os cientistas do CBDF constataram que o experimento falhara.

Ninguém ganhou o “bolão”, a imprensa e os grupos radicais alardearam o fracasso, sugerindo motivos diversos.

A equipe do Centro, no entanto, tinha verbas para continuar suas experiências.

Verbas, e tempo.

***

Os postulados de Dolfinger contribuíram decisivamente, anos depois de sua morte, para o estabelecimento da Teoria Unificada das SuperCordas.

Segundo Dolfinger, paradoxos temporais eram possíveis, e suas equações indicavam que os paradoxos geravam universos diferentes, com novos encadeamentos temporais. Infinitos universos, para infinitos paradoxos possíveis.

Jules Boltzmann, por outro lado, criou toda uma nova série de equações que se baseavam na ideia de que não havia nenhum outro universo além do nosso. Seu trabalho se encadeava com as equações de Dolfinger ao estabelecer que valores infinitos e o zero se equivaliam.

Apesar de não havermos conseguido nenhuma prova experimental sobre este ponto específico, todo o trabalho do CBPF se baseava na crença de que as ideias de Boltzmann eram válidas.

Por isso, ao ver que o campo de projeção se desfizera, lançando pequenos pedaços do Bete e de meu braço por todo o laboratório, meu primeiro pensamento foi de surpresa:

“Ainda existo!”
Então, a dor me atingiu e vi os Betes do círculo começarem a se levantar.
E foi quando pensei:
“Vou morrer”.


Alexandre Lobão



[1] Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, situado em Botafogo, no Rio de Janeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário