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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Chuchus para Suaçuí


O relógio ainda não dera nove horas, mas o balaio de verduras já estava vazio. Voltei animada para casa, com a certeza do dever cumprido. Oba, já tinha dinheiro para o ingresso da matinê do domingo. A alegria de ver o Tarzan todo lindo pulando de cipó em cipó, acompanhado por Jane e pela macaca Chita, estava garantida. Com um pouco de sorte, talvez o dinheiro desse até para um saquinho de pipocas e um picolé de amendoim, quem sabe?

A animação, contudo, não era completa, pois a venda dos chuchus, os últimos legumes do balaio, sempre os de saída mais difícil, deixara dentro de mim um cantinho sombreado. Como conhecia a clientela, saía de casa bem cedo para oferecer as cabeças de alface, os molhos de couve, salsa, cebolinha, mostarda, acelga e almeirão primeiro, pois murchavam à toa, em sua verde fragilidade. A dona do hotel perto da ponte de cimento via as verduras em primeira mão, e geralmente ficava com as de folhas. Depois era a vez dos tomates graúdos, também bastante disputados. Mas os chuchus, ah, os chuchus, mesmo novinhos e claros ficavam no fundo do balaio, duros de carregar e de vender.

Até sua coleta era difícil, já que a rama que tínhamos na cerca espalhou-se pelo telhado da casa. Mal o dia clareava, mamãe pegava a escada para eu subir e andar de gatinhas sobre as telhas, procurando os frutos que se ocultavam debaixo das folhas, em geral mais bonitos e palatáveis. Fazíamos tudo em silêncio, para que papai não soubesse de nossa estripulia, responsável pela quebra de várias telhas, que volta e meia ele tinha de mandar arrumar.

Minhas andanças pela cidadezinha incluíam a zona boêmia, na época conhecida como “Coreia”, um amontoado de casinhas no final de uma rua central e comprida. Conhecia todas as “meninas”, que me recebiam bem, oferecendo-me broa de milho ou farinha de fubá torrado acompanhada de café, inhame com melado, batata-doce com açúcar e canela e outras iguarias. Mamãe sabia, mas não se opunha – provavelmente confiante na ética das “meninas” em relação a uma criança de nove anos.

Meio ressabiada, eu entrava nas casinhas, só aceitava ir até as cozinhas minúsculas, evitando cuidadosamente os quartos. Que, aliás, eram completamente assépticos e inofensivos à luz do dia, minúsculos eles também, separados do resto da casa por cortinas feitas de tiras de plástico ou de contas de lágrimas, que balançavam quando o vento batia. Só uma vez consegui olhar um quarto por dentro, mas tudo foi tão rápido que vi apenas a lâmpada coberta por algo que me pareceu um lenço vermelho.

As cozinhas tinham fogão de lenha e prateleiras cobertas de folhas de papel de seda recortadas de florezinhas, nas cores azul ou verde. Lembro-me do brilho das panelas e dos limpíssimos tachos de fazer doce. Sobre as chapas dos fogões reinavam os bules esmaltados, cheios de café adoçado com rapadura, ralo demais e com gosto de palha.

Gostava especialmente de uma das moradoras, a Madá, que tinha corpo de violão e lembrava um pouco a atriz Sarita Montiel. Ao contrário da espanhola, tinha voz de taquara rachada, em completo desacordo com suas curvas e sua robustez. Usava um perfume muito forte e saias tão justas que não conseguia sentar-se direito. Era a mais gentil de todas, sempre querendo me agradar.

Naquela manhã, provavelmente de maio ou junho, fazia um frio terrível e eu estava sem paletó. Consegui vender tudo bem cedo, com exceção, é claro, dos chuchus. Meus braços doíam de tanto carregar o balaio, os chuchus branquelos e fresquinhos, ainda com gotas de orvalho, pesavam como pedras. Eu os olhava e tinha vontade de atirá-los rio abaixo. Já estava morta de antipatia do jeito deles, sem cor, sem nenhuma “personalidade leguminosa”, sempre adquirindo o gosto do tempero que a gente põe na panela, coisa mais entojada de vender é impossível. Bati em várias portas, todos que me atendiam diziam que tinham rama em casa; como vender tijolos para oleiros?

Sacudindo o balaio com raiva, mudando-o de braço a cada instante, fui andando depressa até chegar às casas das “meninas”. De novo, a mesma resposta negativa. A casinha de Madá, a penúltima da rua, quase chegando ao pasto, estava com a porta aberta e cheirava a café fresco. Recebeu-me com a mesma alegria de sempre, e disse que viajaria no dia seguinte para Suaçuí, para visitar uma prima. Comprou todos os chuchus, pois a prima, disse, iria adorar o presente, comentando que Suaçuí não era longe e que poderia acomodar os legumes numa bolsa de ráfia.

Voltei pensativa, bem alegrinha com o rolinho de dinheiro na mão, mas achando a ideia da Madá muito estranha. Onde ficaria Santa Maria do Suaçuí? Será que lá não havia chuchus? E essa prima, será que apreciaria mesmo presente tão bizarro?

Uma de minhas irmãs quis dramatizar a história, dizendo que tinha muita pena de Madá, do modo como ela ganhou o dinheiro com que pagou os chuchus. Eu não me importei muito com isso, ou quis não me importar, repetindo, mentalmente, que deveria me preocupar era com os meus braços, que doíam de tanto carregar balaio.

Nunca me esqueci de Suaçuí, cidade que permanece desconhecida para mim. Sei que suas origens remontam à época das entradas e bandeiras. Fernão Dias Paes Leme, o mais ilustre dos bandeirantes, se aventurou pela região em busca de um vale de onde se avistavam, segundo a lenda, rios e areias de ouro, além de árvores com frutas do mesmo metal. Consta que ele ficou encantado com a lindeza da Lagoa de Vapabuçu e da Serra Resplandecente, atualmente chamada Serra do Cruzeiro. Fundado oficialmente em 1920, o município possui aproximadamente quinze mil habitantes. Sua economia é movimentada pelo comércio, pecuária, produção de laticínios e agricultura.

Não sei se a prima da Madá gostou dos chuchus ou se achou o presente a coisa mais sem graça do mundo, como eu teria achado. Contudo, posso afirmar que Suaçuí ficou entranhada em mim, assim como a Madá, as outras “meninas”, o gosto do café ralo, a leveza inesquecível das mãos da mãe ao amarrar os molhos de folhas e o pequeno balaio onde cabiam algumas verduras e todos os sonhos.

Rosângela Vieira Rocha


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