Imediatamente após o convite, eu me lembrei do livro grande
do meu avô, que ficava dentro da gaveta da mesa de jantar e de cortar costura, localizada
ao lado do filtro Fiel. Entre as páginas do livro, uma coletânea do Jornal do
Commércio que abrangia o ano transcorrido após a data da independência, havia
toda espécie de coisas: retratos muito antigos, convites de casamento, de
enterros, santinhos de primeira comunhão, volantes de propaganda eleitoral, uma
pena de pavão e outra de arara e, naturalmente, os recortes preferidos.
Na minha infância, fingindo que estava com sede, chegava ao filtro
e me postava diante da mesa, como estátua, até que vovó, percebendo o desejo
que extravasava, dizia “pode”, vasculhando com o olhar os outros cômodos da
casa, para se certificar de que meu avô tinha saído. Eu ia direto ao exemplar do
dia 9 de março de 1922, uma quinta-feira, que abrigava a folha de papel almaço,
acetinado. Na primeira página, os dizeres: “O Calendário da Revolução – Decretado
pela Convenção em 1792, só foi abolido por Napoleão 13 anos depois”. No verso e
nas demais páginas, 12 gravuras se expunham, em grupos de quatro. Representavam
os meses do ano, cuja duração parecia coincidir com a dos signos do zodíaco: Pluvioso,
Ventoso, Germinal, Floreal, Prairial, Messidor, Termidor, Frutidor,
Vendemiário, Brumário, Frimário e Nivoso.
Por causa dessas ilustrações, me afeiçoei à história da
França, sobretudo ao estudo da Revolução Francesa e dos fatos posteriores a
ela. Assim, de férias em outra cidade, julguei-me predestinada quando conheci
Thiers, o rapaz que me fizera o convite. Não levei em consideração o papel
repressor que Louis Adolphe Thiers desempenhara contra a Comuna de Paris. Afinal,
o Thiers que eu conheci era brasileiro, moreno de olhos azuis, muito bem
educado.
Demorei um pouco a responder, porque a silhueta rechonchuda e
o rosto apreensivo da mulher do Calendário vieram-me à memória. Trajava um
vestido da cor sépia, que contrastava com o mar claro do fundo. Uma das mãos, enérgica,
segurava esvoaçante véu branco. A alça trançada de uma cesta enfeitava o braço
direito, sob o qual se alongava um anzol. Na superfície da cesta, alguns peixes
exibiam suas pequenas caudas. À esquerda, juncos inclinados pelo vento erguiam-se
de um cesto maior. Era a efígie que representava o mês Ventoso, de 19 de fevereiro
a 20 de março, período que abarca o dia do meu aniversário. Sou de Peixes.
- E então, você quer ir comigo ao Ventoso?
- Ventoso é um barzinho?
- Se você aceitar, saberá. Não, não é um barzinho.
- E quando iremos?
- Amanhã à noite.
Não podia imaginar a que lugar Thiers se referia. Não quis
perguntar aos meus primos, fiquei sem graça. E na completa ignorância, saí de
manhã, para comprar sapatos e roupas. Eu morava numa cidade muito pequena e não
tinha acesso a coisas bonitas. Por isso, preferia reservar um pouco do meu
parco salário de professora, e, se aparecesse alguma viagem, gastá-lo com
produtos mais finos, para me exibir na minha cidade pobre, ainda que na missa das
dez.
A bem da verdade, dessa feita o motivo do passeio fora
outro. Estava mais ou menos apaixonada por um rapaz da minha cidade, que não
estudava, não tinha emprego, mas era alto e de feições elegantes. Meu pai,
contudo, não achava que o porte físico suprisse deficiências intelectuais ou
financeiras e, tachando o rapaz de “gentinha”, se ofereceu para completar o valor
da passagem até onde moravam meus tios, na esperança de que eu trocasse de
namorado. Pode parecer cinismo, mas aceitei. Naquela época, para mim, era
melhor ficar triste numa cidade diferente, do que chorar nas margens do riacho
estreito, infenso às minhas lágrimas.
Conhecera Thiers há dois dias. Na primeira vez em que o vi,
eu estava na pracinha com meu primo, um adolescente alegre. Ríamos porque,
devido ao calor, os sorvetes pingavam e manchavam nossas roupas. Thiers nos
olhou, foi até à confeitaria, e voltou com vários guardanapos. Agradeci-lhe a
gentileza, e, após as apresentações e algumas delongas, ele me convidou para ir
ao cinema. Fui, mas não sozinha. Por imposição dos meus tios, meu primo nos
acompanhou. Se Thiers se decepcionou com esse fato, pelo menos não disse nada.
Na segunda vez, fomos sozinhos à confeitaria, na tarde ensolarada. Depois disso,
mais nada. Eu tentava açular o tempo para conhecer o Ventoso.
Estava indócil, naquela manhã. Olhava as vitrines sem me
fixar no que queria, naquilo de que precisava. Pensava em Thiers e no convite.
Ventoso me parecia nome de barco, de cavalo, de mirante. Contudo, a cidade não
tinha lago, muito menos mar. Nunca me falaram sobre hípicas e o mirante que eu
já conhecia não se chamava assim. Meu primo me alertou:
- Você está desperdiçando seu tempo. Por que não compra a
saia vinho e o mocassim vinho e branco? Você me disse que queria isso...
Olhei para a vitrine e gostei das peças. Poderia usá-las com
meu conjunto de banlon branco. Diante de tanta harmonia, me veio à ideia ir ao
cabeleireiro, ficar linda para conhecer o Ventoso e encantar Thiers. Despedi-me
do primo e adentrei o salão mais sofisticado que eu já vira. Tive vontade de
recuar, correndo, minha aparência talvez fosse canhestra, rir-se-iam de mim, eu
era muito sem traquejo. Tarde demais, porém. A atendente, polida em excesso, me
olhou de cima para baixo e, diante das minhas pretensões, me indicou uma moça
bem maquiada, que foi decidindo:
- Seu cabelo, sendo pouco, ficará bonito se fizermos uns
bucles, para armar o penteado. Nas unhas, esmalte rosa-choque.
Minha voz saiu tênue:
- Quero esmalte cor de vinho...
Ela me olhou, como se eu tivesse falado uma heresia. Eu não
quis explicar nada e me encerrei no escudo dos tímidos, o mutismo absoluto.
Muito sofri. Meu cabelo, curto, se alongava um pouco na nuca, até se desfazer
em fios esbatidos. A cabeleireira enrolava os cachos e esmagava-os com prendedores
de metal, cujas pontas quase me tocavam os ombros.
- Agora, você vai para o secador.
Muito mais tarde deduzi que a moça me castigara pela escolha
do esmalte. No secador, os prendedores se esquentaram e queimavam-me a pele,
sem piedade. Muda e envergonhada, deixei pra lá, tal como faço diante de
situações adversas. Desempenhava, agora, o papel de bruxa sobre a fogueira, com
muitos pecados, entre eles o de querer pintar as unhas com esmalte vinho.
Por volta das 20 horas, Thiers tocou a campainha. Eu já
estava cansada, antes mesmo de sair. A maquiagem dera trabalho, a base muito
bem espalhada para cobrir as manchas da minha nuca, marcas da ígnea aventura.
Thiers não estava de carro e, na calçada, me disse que o
Ventoso se erguia a dois quarteirões dali. Não elogiou minhas roupas, nem o
cabelo, fato que me causou estranheza. “Que coisa! Sofri com esse cabelinho
mirrado, gastei todo meu dinheiro com a saia e o mocassim, que agora se enterra
na poeira e se esgarça nas calçadas mal cuidadas, e ele nem nota?”
- Ainda está muito longe?
- Não. Na verdade, eis o Ventoso.
Confesso que não entendi. Tudo estava muito escuro, mas
divisei um muro velho, com a argamassa carcomida, totalmente sem graça. Aqui e
ali, algumas proeminências, como se fossem colunas. “Será alguma construção
colonial?” Mergulhada nessas dúvidas, que somente a imaginação poderia gerar,
me assustei quando percebi uma moça apoiada no muro. Apertei o braço de Thiers,
em busca de apoio.
- O que é isso?
- O Ventoso, um muro para os namorados se acariciarem em paz. Um lugar no qual tudo
é permitido, abraços, beijos, a gradação é enorme...
- Você não me deu a entender que se tratava de uma coisa
assim. Por que eu? Levo jeito de oferecida, é isso?
- Não, não leva. Tanto que não tive coragem de descrever o
Ventoso para você. Mas, já que estamos aqui...
- Não, não estamos aqui. Estamos em outro tempo, em outro
espaço, nos quais você se fazia passar por bem educado e gentil. Vou-me embora.
Na tentativa de um abraço, o relógio de Thiers se desprendeu
e acabou sorvido pela escuridão e pela poeira. Aproveitei o que para ele era um
contratempo e retornei, sem olhar para trás. “Eu me enganei de novo. Como
Thiers pôde proceder assim? Não tem sensibilidade, é louco varrido. A ousadia
dele é sem limites. Por que pensou que eu iria me submeter, encostada no muro,
como cariátide sem-vergonha?”
Não consegui dormir. O rosto de Thiers adquiria formas que
se alternavam: anjo, demônio, sabiá, gavião, lírio, flor carnívora. E a cada
imagem, meu sentimento por ele se modificava. Eu manipulava os fatos, inventava
personagens que empurraram Thiers para protagonizar o horrível desfecho. Até
que, exausta, me rendi.
O sol abriu as portas para a sanidade e me permitiu transpor
o espaço melodramático. Thiers nunca estivera apaixonado por mim e eu, em
verdade, também não o amava. Queria um substituto para meu namorado “gentinha”
e vivera uma farsa.
Estava à mesa, no café da manhã, quando a campainha tocou.
Era Thiers. Não desejava vê-lo, mas não quis levantar, em meus tios, a suspeita
de que algo dera errado. Assim, fui recebê-lo. Constrangido, ele me disse:
- Sinto muito pelo que aconteceu ontem. Mas, sou sincero.
Estou à procura de alguém que aceite aquele muro. Não quero me comprometer, não
quero me apaixonar, sou apenas um estudante. Mas, se possível, gostaria que me
perdoasse. Trouxe algo para você, para que possa se lembrar de mim sem rancor.
Recebi o embrulho das mãos dele, mas não o abri. Não disse
uma palavra. Apenas olhei para aquele rosto que eu quisera amar e deixei que
ele se fosse. Mais tarde, em meu quarto, desamarrei a fita e abri a caixa, com
vontade de chorar. Era um pequeno paralelepípedo de acrílico, compacto e transparente,
com uma estreita faixa branca que definia a base. Lá dentro, um peixinho alaranjado
em seu cenário: um pouco de alga e algumas folhas pontiagudas, semelhantes às
do junco. O enfeite desprendia carinho, como o que devia existir nas faces
anjo, sabiá e lírio de Thiers.
Após todos esses anos, ainda tenho o meu peixe, que fica ao
lado da coleção de miniaturas de navios. Às vezes me lembro de Thiers. As
coincidências que cercaram nosso encontro fugaz me espantam: o nome do muro, os
peixes e o junco na ilustração do mês Ventoso, meu signo zodiacal e o peixinho empalhado
que Thiers me deu.
Meu signo é representado por dois peixes, ligados por um
cordão de ouro, que, nadando em sentido contrário, indicam ambivalência. Há uma
analogia flagrante entre a representação do meu signo e o enfeite: apesar da
presença de um só kinguio, há outro peixinho imaginário, ligado ao seu duplo
pelo fio de Thiers. Quando considero que Thiers quis apenas me devolver a autoestima,
o peixinho visível sou eu. Se, contudo, Thiers pretendesse se dar a mim, o
kinguio real seria ele. Tais considerações me levam aos eternos conflitos do
meu signo, desta feita representados por uma indagação: quem está preso no paralelepípedo
de acrílico, Thiers ou eu?
Edna Vieira Rocha de
Rezende
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