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terça-feira, 5 de março de 2013

Recaída



Olha só onde é que eu tava naquele dia: preparando exames de risco cirúrgico para proceder minha histerectomia subtotal por videolaparoscopia. No resultado da esteira, surgiu um indicador de que haveria risco de isquemia cardíaca. Duas possibilidades: alguma disfunção cardíaca ou deficiência hormonal própria de mulheres da minha idade, próximas da menopausa, com queda na produção de hormônios. O cardiologista não podia ficar na dúvida. Me mandou fazer uma cintilografia do caroção. Do coração. Tive que tomar uma injeção de um líquido radioativo que iria brilhar no escuro da câmera onde entrei para me submeter a fotos sequenciadas de todas as partes do músculo cardíaco. Ali dei a primeira pala. Coração disparado, pânico de ter que ficar imóvel. Só porque a moça mandou ficar imóvel, não respirar com força, não tossir, não esgagar. Não engasgar. Taquicardia braba, medo, pânico. Era o teste em repouso. Poucos dias depois, o de esforço, após correr na esteira e tomar na veia outra injeção de líquido radioativo. Novamente a câmera, imóvel, sem tossir ou respirar forte. Nova taquicardia, mais branda, novo pânico.

A cintilografia não deu nada, mas fiquei depois disso com medo de estar sofrendo de algo. Bateu aquela ideia de que a idade é de risco. Fui pra cirurgia com pequeno receio. E se a anestesia me fizesse mal? E se morresse ou tivesse um piripaque na mesa de operação? No dia, a cena: entro no hospital cagando tudo. Numa salinha tiro toda a roupa. Me sentam numa cadeira de rodas. Na porta do centro cirúrgico, entrego à Irmã Mais Velha os óculos, perco o contato visual com o mundo, engulo lágrimas que escorrem fugitivas. A enfermeira me autoriza a chorar. “Todos têm medo”, garante. Olho pros lados, a médica chega, a anestesista se apresenta, não vejo mais nada.

Abro os olhos, o Médico Amigo e Ex está ali, conforme o prometido, zelando para que tudo me cercasse de segurança. Penso que é meio-dia e meia, são três da tarde. Tem um caninho de plástico no meu nariz. Volto pro quarto, encontro as irmãs, a Mãe, não sei bem em que ordem. Quando chega a noite e tenho que tomar uns remédios mais fortes contra a dor, o segundo susto: ela me aplica uma droga muito pesada, que me faz sentir pânico, a cabeça fica louca, agarro a mão da Cunhada Irmã e temo morrer. Grito para a moça não sair do quarto porque posso morrer. Ela diz que o remédio é mesmo muito forte, que posso não querê-lo mais. Imploro que anote na ficha para nunca mais me aplicarem aquilo, senão morro ou enlouqueço.

Dali em diante, no pós-operatório, se divide a minha relação com os medicamentos. Quero parar de tomá-los o quanto antes, me dão tonteiras, receio a volta da reação de enlouquecimento. Angústia, ansiedade me deixam quase louca. “Não é para quem quer”, garante a Analista. Enlouquecer não é pra mim. Mas os sintomas do pânico posso. E voltam. Peço a volta do Lexotan. Tenho medo de ficar sozinha, de entrar no avião e não dar conta de ficar ali dentro. O Lex me permite embarcar sozinha de volta à cidade onde moro, aos braços do Amado. O Lex me acompanha nas horas em que temo comer, ficar sozinha, não dormir, não engolir o remédio, nas dores no corpo, na ansiedade que empurra o tempo em câmera lenta...

Ela não sabe mas precisa escrever pra se salvar da loucura. Da ansiedade doentia que lhe tira o controle sobre os sintomas que a circundam, encostam, vão e voltam. Que vão, não voltem! Que a libertem logo da prisão que impede a escrita libertadora. A salvação. A palavra. A confissão. Confesso a Deus todo-poderoso que preciso confessar a mim mesma o que preciso dizer. Está tudo ali, ela sabe e não vê, ela vê e não sabe.

Clara Arreguy

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