Foto: Pedro Martinelli
Desde a
pré-história, quando o ser humano diferenciou-se dos animais pelo desenho e
pela invenção da linguagem, vem colocando todos os materiais disponíveis a
serviço da sua inteligência, engenho, criatividade, comunicação e
expressividade. Pedras, resinas, madeira, conchas, contas, sementes, fibras,
metais, penas, sons, movimentos corporais, palavras deixam seus fins
utilitários. A inquietação humana retira a matéria de seu lugar de origem e
transmuta sua função, criando elementos de entretenimento e manifestação
expressiva. Deslocados de sua natureza original, esses adotam novas
funcionalidades, novas configurações e ecoam novos significados.
Marcel
Duchamp alertou o homem do século XX para o que parecia óbvio, mas até então
não tinha sido percebido com clareza: “A arte é um olhar amoroso sobre a vida”.
Os objetos, desnaturalizados, retirados de seu ambiente natural provocam um
estranhamento que é próprio da experiência estética. Assim também ocorre com a
linguagem. As palavras abandonam sua função comunicativa e referencial imediata
e penetram no mundo da polissemia, da metáfora, dos segundos sentidos.
Transformam-se pela densidade que vai sendo agregada aos seus sentidos
originais.
As crianças,
desde que começam a descobrir a linguagem, são fascinadas pelo seu mistério e
pelas suas potencialidades lúdicas. Inventam parlendas, trava-línguas, jogos e
línguas secretas. A substância sonora da língua é um brinquedo. Quando
transgredimos a ordem canônica, quando inauguramos uma opacidade nesse
instrumento que, no quotidiano, busca transparência e referência, chamamos a
atenção para suas inusitadas possibilidades e abrimos um horizonte de novos
paladares, novos prazeres, novas sensações intelectuais.
A língua não
se presta apenas para a comunicação, nem é transparente de forma satisfatória
para a transmissão fiel de um pensamento. Em suas dobras, em seus meandros,
provocando flexões inesperadas, multiplicamos suas fronteiras e trazemos maior
densidade e efetividade à ideia e às emoções que queremos transmitir. No dia a dia,
na nossa linguagem oral informal, exageramos muito no uso de recursos que estão
disponíveis no sistema e até mesmo transgredimos o sistema para alcançar maior
expressividade
Queremos
tornar nossas ideias mais claras e nossos sentimentos mais evidentes.
Exploramos os sons da língua por meio de onomatopeias, como se fizéssemos parte
de uma história em quadrinhos: Hummmm!
Tbum! Cresh! Catapum! Brouummm! Vroumm! Splash! Poc poc! Toc toc!
Repetimos
frases da sabedoria popular que se transformam em filosofia de vida: Nada como um dia depois do outro! Nada como
o tempo para passar! Deus ajuda a quem cedo madruga! Quem cala consente!
Invertemos a sintaxe direta para despertar novos significados: Trabalho ele não quer! Repetimos para
despertar a atenção de nosso ouvinte: Entendeu?
Compreendeu? Tá? Né? Viu? Respondemos à fala do interlocutor com ênfase em
exclamações exageradas e cheias de segundas intenções: É mesmo? Verdade? Não acredito!!! Nossa! Credo! Os nossos
qualificativos extrapolam a morfologia: chiquitíssimo,
estranhésimo. Pequenas frases ampliam sua possibilidade de significação e
avançam sobre campos surpreendentes: Fala
sério! Não é brinquedo não! O amor é lindo!
Misturamos
palavras de outras línguas na nossa frase. No nosso dialeto familiar e regional
reduzimos as palavras ao mínimo e nos fazemos compreender de forma quase que
telepática:
Na margem de um rio,
dois pescadores mineiros preparam o café:
- Po pô o pó?
- Pó pô, pó pô poquim
pra não cabá o pó.
Distorcemos a
pronúncia para brincar com os sentidos: Faiz
Pa[r]te! Graaannnde! É véi! Hiperbolizamos os itens gramaticais para
acentuar um sentido especial: Ele é “o”
artista! Riu “de” mim ou riu “para” mim? Ontem você “ficou” com quem? Você já
“assumiu” a moça? “Quem” respondeu? “Você” respondeu? Nem eu!
No universo
da literatura, estamos acompanhados de grandes mestres transgressores. Os
poetas modernistas redescobriram o Brasil por meio da língua brasileira: “Se
havemos, pois, de só escrever certo portuguesmente, escrevamos errado mas
brasileiramente, isto é, como fala o nosso povo.” (Cassiano Ricardo, "O
homem cordial"). Oswald de Andrade denunciava em seu poema Pronominais:
“Dê-me um
cigarro
Diz a
gramática
Do professor
e do aluno
E do mulato
sabido
Mas o bom
negro e o bom branco
Da Nação
Brasileira
Dizem todos
os dias
Deixa disso
camarada
Me dá um
cigarro.”
Mario de
Andrade construiu uma língua pessoal e artística, pelo processo de colagem e
combinação dos falares brasileiros, que usou nos romances e na vida real: “Que mundo de bichos! Que despropósito de
papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas
cordas os morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha,
branquíssima, de certo a filharada da mandioca.” ("Macunaíma", p.
51) “E fica muito pau pra mim estar de agradandinho por cartas subterrâneas.”
("Cartas a Alceu"...,p.45)
Mas quem
celebrizou-se por brincar com a expressão verbal, radicalizando a liberdade de
despertar novos limites para as palavras, ao explorar-lhes a sonoridade e as
possibilidades morfológico-semânticas, foi Guimarães Rosa: “E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. (Tutameia,
p.104). Hoje em dia, nas vertentes abertas pelo modernismo, João Ubaldo pode
exercer seu talento ilimitado. Podemos usar e abusar da língua e dizer que
mesmo assim: “... esmurrando e mordendo o
ar, com ferocidade, que nada, nada, nada, nada, nadinha de nadíssima, nadissimizíssima, pode acontecer com ela...” que a
prejudique, restrinja ou diminua. (fragmento adaptado de "Viva o povo
brasileiro", p.371). A língua está viva e por isso reage e se submete,
sofre e cresce, modifica-se e amplia-se.
Não se trata
de pretensão literária. Queremos explorar a linguagem, usar ao máximo os seus
recursos de produção de sentidos, queremos nos expressar da maneira mais
intensa. Para isso, muitas vezes, massacramos o sistema estabelecido da língua,
pois como diz Luis Fernando Verissimo: “A gramática precisa apanhar todos os
dias para saber quem é que manda” ("O gigolô das palavras").
Lucília Garcez é ex-professora da UnB e escritora,
autora de “A escrita e o outro” – UnB, 1998; "Técnica de redação",
Martins Fontes – 2001, e "Explicando a arte", Ediouro - 2001.
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