O
champanhe estourou com um som seco, quase um tiro. Roberto Braga, o chefe da
Unidade, sorriu sem convicção, encheu a primeira taça e a levantou na direção
de todos.
-
À nossa aposentadoria!
Os
investigadores levantaram suas taças ao mesmo tempo, lentamente, como em uma
coreografia melancólica.
A
comemoração, se é que poderíamos chamá-la assim, continuou com um burburinho de
vozes, quase todas soando desagradadas. Aproximei-me do chefe.
-
E aí, Braga? Quer dizer que agora não tem mais volta, mesmo?
Ele
levantou as sobrancelhas e fez um gesto de desalento com as mãos.
-
Quem me dera, Martelli. O DT-Eye foi utilizado em todos os casos no último ano
e provou que é, no mínimo, tão bom quanto nós. E muito mais rápido. A resolução
já foi assinada pelo governador; temos um mês para acompanhar os últimos casos,
empacotar nossas coisas e fechar o barraco.
-
Todo mundo vai ser dispensado?
-
Exceto os operadores do sistema, é claro.
Concordei
com um aceno de cabeça, levantei o drinque em cumprimento e circulei pela festa
com um gosto amargo na boca. Não sabia o que estava fazendo ali, mas tampouco
me animei a retornar para casa. Lembranças demais.
Arrastei
os passos até o outro lado do salão e joguei-me em minha cadeira, ficando
escondido pelas paredes de meia altura do cubículo de trabalho. Era difícil
acreditar que, em breve, minha carreira estaria terminada. Vinte e cinco anos
de serviço, e pelo menos outros vinte e cinco anos produtivos pela frente...
Era muito cedo para qualquer um se aposentar!
Com
o peito ainda pesado puxei a lâmina, que estava debaixo de uma pilha de
bugigangas, e pressionei no botão embutido na lateral. O vidro ficou leitoso,
apresentando os ícones padrão da SecCorp, e cliquei quase por instinto no ícone
do DT-Eye.
Na
lista de “casos sem acompanhamento” havia um caso, ocorrido às 18h30 e
resolvido pelo sistema às 20h30, quando chegaram os resultados da autópsia,
menos de um minuto atrás. Segurei o dedo sobre o caso por alguns momentos, e o
menu de contexto apareceu.
“Acompanhar”.
Automaticamente,
o DT-Eye mostrou o andamento do caso em formato de uma história de quadrinhos
animados. Uma morte em cinco quadros.
18h00 – Renata Luzes,
29 anos, sai do prédio da Omni NanoCorp, onde trabalhava como nanoengenheira. O vídeo mostrava
uma garota que não aparentava mais de 18 anos, andando apressada e com um ar
perturbado. O endereço da empresa flutuava sobre a imagem do prédio.
18h20 – A vítima
entra no centro de vendas Union SkyMall, claramente perturbada. “Claramente
perturbada”. Nunca me acostumaria com as avaliações emocionais feitas pelo
DT-Eye. O vídeo mostrava a garota gesticulando e falando sozinha. Cliquei no
endereço que aparecia sobre o prédio e selecionei “rota para o quadro
anterior”. Dois quarteirões. A vítima deve ter percorrido o espaço a pé, e pela
demora deveria estar relutante.
18h25 – A vítima
chega ao terraço panorâmico do centro de vendas, ainda mais perturbada. O vídeo mostrava a
garota ainda falando, como se discutisse com alguém. Cliquei no ícone de texto
e a transcrição do seu monólogo apareceu, um conjunto de argumentos soltos,
como se ela estivesse respondendo a uma voz inexistente que, aparentemente, a
induzia a fazer algo que não queria.
18h30 – A vítima
salta do terraço panorâmico, atingindo o solo 3,5 segundos depois. Dois vídeos
dividiam o quadro, um mostrando a garota subindo em uma cesta de reciclagem
para atingir o topo da parede de vidro, e outro de longe, a queda vista por
alguma câmera de rua.
20h30 – Conclusão do
inquérito: Suicídio induzido por comportamento esquizofrênico. Morte por
traumatismos múltiplos. Ausência de drogas no sangue e de histórico pessoal ou
familiar de esquizofrenia indica provável EISIV. Caso resolvido.
E.I.S.I.V.
Esquizofrenia Induzida por Superexposição à Imersão Virtual. Era cada vez mais
comum ver cérebros viciados em I.V. falharem ao retornar à realidade, mas algo
naquele caso parecia não se encaixar. Olhei novamente o último quadro, uma
colagem de fotos do corpo na marquise do SkyMall e da autópsia. Um corpo magro,
ligeiramente bronzeado, cabelos negros e curtos.
Balancei
a cabeça, negativamente. Talvez eu apenas estivesse incomodado pelas grandes
asas tatuadas nas suas costas, que evocavam lembranças que eu preferia manter
enterradas.
Desliguei
a lâmina e a coloquei no local devido, presa à parede do meu cubículo, talvez
pela primeira vez desde que assumira aquele espaço. Suspirei. Teria um mês para
arrumar aquela bagunça, mas hoje à noite eu precisava de algo mais forte que
champanhe.
* * *
Saindo
discretamente pelos fundos do salão, fugi para o bar em frente à SecCorp.
Algumas caras conhecidas, incluindo alguns colegas da Unidade, se voltaram à
minha entrada, mas segui para um canto escuro e cliquei no cardápio, pedindo um
uísque duplo com gelo.
A
aposentadoria da SecCorp seria suficiente para me manter, com alguma folga para
eventuais luxos. Não que eu os tivesse. Mas o que me incomodava era o
sentimento de inutilidade, a ideia de que metade de minha vida tinha sido
aplicada em uma cruzada dispensável, substituível por uma I.A. provavelmente
programada por outras I.A.s. Se eu ainda tivesse uma família, quem sabe...
Afoguei
esta linha de pensamentos terminando o copo em um só gole. Uma careta, um
clique, mais um uísque.
A
luz direcionada sobre a mesa iluminou o novo copo e projetou uma sombra
alaranjada sobre o tampo claro. Olhei por alguns instantes para a bebida,
tentando descobrir o que estava errado. Só então percebi que o uísque estava
mais escuro, eu havia esquecido de selecionar o gelo no pedido...
De
repente, ficou claro o que não se encaixava naquele caso de suicídio.
Pressionei o polegar no canto do menu confirmando o pagamento e saí de volta à
SecCorp sem tocar na segunda bebida.
* * *
De
volta ao cubículo, recarreguei o caso e cliquei no último quadro. O quadro se
expandiu e tomou toda a superfície da lâmina, trazendo dados técnicos da
autópsia na barra à esquerda e as fotos à direita. Deslizei diversas fotos para
o lado até descobrir uma que mostrava a vítima, de costas.
Aproximei
a foto, e verifiquei que minhas suspeitas estavam certas: o que me incomodara
antes é que a vítima, Renata Luzes, não tinha a cor certa. As asas em suas
costas eram claras, mas os braços e a parte da pele em volta do pescoço eram
mais escuros, indicando que ela saía de casa com frequência suficiente para se
bronzear, o que absolutamente não combinava com o perfil dos viciados em I.V.
Além
disso, executando o vídeo a partir do momento da foto, confirmei que a tatuagem
não brilhava nem se movia. Definitivamente, uma tatuagem retrô não combinava
com um tecnoviciado.
“Evidências
circunstanciais, se tivermos a boa vontade de chamar isso de evidências” – eu
podia até imaginar o Braga me sacaneando – “deixe essa coisa de lado, para que
estragar a festa de sua promissora aposentadoria com um pouco de trabalho?”
Ri
da ironia e comecei a me aprofundar nos detalhes do caso. A autópsia revelava
níveis maiores que o comum de bismuto, grapheno e germânio no sangue. Restos de
nanos? Bem, isso poderia ser comum se ela tivesse sofrido alguma nanocirurgia
recentemente, o que me levou ao seu histórico médico. Como ele não indicava
nenhuma nanocirurgia, solicitei que o scanner
da autópsia realizasse uma análise mais específica, procurando por sinais de
nanoalterações realizadas recentemente.
O
modelo 3D mostrou o corpo em azul, com pontos vermelhos nos dois olhos e ambos
os ouvidos. Novamente no histórico médico, não localizei nenhum tipo de
deficiência visual ou auditiva.
Seguindo
a pista, ainda que tênue, solicitei comparação de imagens do rosto da garota de
três meses antes (mais do que isso e os sinais dos nanos já teriam se
dispersado) com as atuais. Virei os rostos em 3D de um lado para outro,
aproximei as imagens, mas o resultado foi nulo: tanto olhos quanto orelhas não
haviam sofrido nenhuma alteração cosmética.
Por
que diabos, então, ela teria passado por uma cirurgia? Registrei o comentário e
retornei à tela principal.
Comecei
a me aprofundar em suas atividades. Nanoengenheira, ela trabalhava na divisão
de pesquisas da Omni NanoCorp. Teria ela sido cobaia de algum tipo de testes?
Isso não fazia sentido.
Selecionei
então os registros de segurança da empresa dos últimos três meses, e procurei
todas as ocorrências associadas à vítima.
Mais
algumas filtragens e sobraram cerca de vinte operações de acesso negado. Renata
havia tentado acessar o conteúdo de outra área da empresa, por diversas vezes e
sem sucesso. No registro de sua última tentativa, verifiquei que ela havia
vencido as duas barreiras virtuais de isolamento, mas não conseguira listar ou
copiar nenhum conteúdo devido ao protocolo de segurança.
Recuperei
os logs de acesso posteriores, e
verifiquei que em nenhum momento ela conseguira acesso total às informações que
procurava. Pouco depois das tentativas, seu login
mudara, indicando que ela fora transferida para outro departamento.
Espionagem
industrial? Aos poucos, um motivo para crises de consciência, ou mesmo para um
assassinato, começava a se delinear. Mas ainda era muito pouco. Eu precisava
saber se o segredo que Renata tentara acessar valia o suficiente para que
desejassem silenciar alguém que chegara perto demais de descobri-lo.
Registrei
os dados e meus comentários e segui adiante.
Meu
próximo passo foi entrar na rede privada da Omni
e tentar acessar a área segura.
Acesso negado.
Olhei
por cima do cubículo e conferi que alguns colegas continuavam na festa de aposentadoria
da Unidade, mas nenhum dava atenção à área dos cubículos de trabalho onde eu
estava.
Entrei
então com o login privilegiado da
SecCorp, o que – teoricamente – apenas o chefe da Unidade poderia fazer.
Acesso negado.
Agora
eu finalmente tinha uma evidência real de que algo estava errado na Omni
NanoCorp. Por lei, toda informação deveria estar disponível para os logins privilegiados das Corporações de
Segurança, e se eles tinham algo a esconder, talvez esse algo fosse grande o
suficiente para que desejassem silenciar qualquer curioso.
Não
que isso fosse um problema para mim.
Acessei
o DT-Eye e solicitei a abertura de um novo processo de investigação, com quebra
do sigilo indevido que infringia a lei da livre informação. Com o endereço
registrado, o sistema levou alguns milésimos de segundo para verificar que a
denúncia procedia, e menos de dez segundos para, usando o poder de computação
em rede do Governo, conseguir o acesso às informações.
Com
certeza, em algum lugar da Omni NanoCorp os alarmes devem ter soado, e técnicos
já deveriam estar correndo para descobrir o que provocara o vazamento de
informações. Mas era tarde demais: em minha lâmina, listas de projetos de
nanos, modelos e relatórios eram rapidamente analisados, agrupados por assuntos
e salvos no servidor da SecCorp como evidências.
No
centro da nuvem de informações, resultante da análise dos documentos, duas
palavras se destacavam: nanoconstructos
sensoativos.
Um
frio percorreu minha espinha, ao lembrar da onda de suicídios coletivos quinze
anos antes, provocada por nanoconstructos que injetavam propagandas diretamente
nos nervos óticos e auditivos e que culminou na proibição em todo globo de
nanos que alterassem os sentidos.
Logo
abaixo, na nuvem de palavras e imagens, saltavam aos olhos as palavras militar e restrito. Clicando em “militar” para torná-lo centro de uma nova
nuvem, apareceram não apenas os nomes de duas agências de inteligência do
governo, mas também uma dúzia de outros nomes, alguns de agências similares em
outros países, e outros totalmente desconhecidos para mim. Com certeza a
sujeira na Omni NanoCorp era grande.
Como
a invasão aos dados havia sido coordenada pelo DT-Eye, a abertura do processo
ocorreu automaticamente, e com uma confirmação liberei a expedição das ordens de
restrição de bens e de acesso a informações para todos os envolvidos naquele
projeto.
Mas
ainda não era isso que eu estava procurando.
Retornei
ao caso de Renata Luzes e vinculei o processo de investigação de dados recém-aberto
como evidência, incluindo meus comentários.
Apesar
de as evidências levarem a uma única conclusão, faltava ainda uma prova não
circunstancial de que o suicídio dela havia sido induzido pela empresa.
Da
lâmina, fiz nova solicitação ao scanner
de autópsia, desta vez para realizar uma pesquisa por nanos remanescentes.
Normalmente os nanos se autodestruíam automaticamente após seu uso, e seus
restos eram eliminados naturalmente pelo corpo. No entanto, considerando que
eram usados milhares, por vezes milhões de nanos em uma única operação, era
comum que alguns apresentassem defeito e ficassem simplesmente inativos, presos
a algum tecido ou vagando pelo corpo.
Dez
minutos depois, o scanner havia
detectado três nanos inativos nos olhos e sete nos ouvidos, o suficiente para
uma engenharia reversa. Mais quinze minutos, e a análise microscópica de sua
estrutura revelava a frequência que estavam pré-programados para responder.
“Peguei
vocês, seus filhos da mãe!”
Registrei
os nanos e a frequência como evidências no caso de Renata e retornei à tela
inicial da lâmina, entrando agora no SAT – Sistema de Análise de Transmissões.
Indiquei a localização do SkyMall, a hora da morte e a frequência a ser
analisada.
O
sistema demorou alguns instantes para recuperar os registros das transmissões
das bases do SkyMall, e pouco mais que isso para decodificá-las.
Abri
novamente o caso de Renata e mandei sobrepor as mensagens e imagens gravadas ao
vídeo do terraço panorâmico, onde ela parecia conversar sozinha. O diálogo se
completou perfeitamente, com a imagem de uma senhora, ligeiramente fora de foco
e vista de um ângulo diferente do gravado pela câmera, conversando com a pobre
garota.
“Você
nunca prestou para nada, mesmo!”
“Mas,
mãe...”
“Não
tem mas nem meio mas. Você arruinou minha vida, abandonei tudo o que eu queria
ser por você, e no fim, o que você faz? Me deixa para morrer abandonada!”
“Mãe,
você nunca disse que se sentia solitária!”
“E
é preciso dizer? Morri sozinha em casa, sem alguém até mesmo para segurar minha
mão!”
“Mãe,
para com isso! Eu não quero morrer!”
“Eu
também não queria, querida. Mas agora podemos ficar juntas. Venha comigo e
prometo cuidar de você...”
A
raiva pintou de vermelho minha visão, e parei a execução do vídeo. Os animais
haviam atormentado a garota até que ela se matasse, usando traumas e lembranças
da mãe dela!
Olhei
para aquele rosto de menina, congelado em um momento de desespero em um dos
quadros do processo. Quanto tempo será que ela sofreu aquela tortura
psicológica, até finalmente quebrar?
Vinte
e cinco anos de trabalho, e ainda assim precisei respirar fundo para engolir a
revolta com aquele caso.
Fechei
o vídeo superposto e salvei-o como mais uma evidência.
Retornei
à tela inicial do DT-Eye. Segurei o dedo sobre o caso de Renata e no menu de
contexto que apareceu selecionei “Corrigir
conclusão”.
“Tem certeza?”
Sim.
Era a primeira correção de um veredicto do sistema, desde seu lançamento, um
ano atrás.
No
espaço para o “Nova conclusão”
preenchi “Homicídio”.
Para
o campo de “Provável culpado”
arrastei os nomes dos executivos do organograma da Omni NanoCorp, desde o
presidente até o chefe do departamento que conduzia a pesquisa com nanos
sensoativos.
“Confirma múltiplos culpados?”
Sim.
Adicionei
os registros de provas e evidências que havia coletado e mandei o sistema
validar o novo resultado das investigações.
O
DT-Eye analisou as evidências, cruzou com as informações do outro processo que
eu abrira e confirmou minhas conclusões.
“Nova conclusão aprovada. Acusação de homicídio
adicionada às acusações de infrações informacionais e de produção ilegal de
constructos sensoativos.”
Pressionei
o botão de “ok” e, para minha
surpresa, mais uma tela apareceu, com um vídeo do chefe do departamento de
desenvolvimento de sistemas.
“Como forma de melhorar o DT-Eye, gostaríamos
de seu depoimento sobre a investigação realizada, respondendo a uma questão: O
que o levou a discordar da conclusão do sistema e aprofundar as investigações?
Pressione ok para iniciar a gravação.”
Melhorar
o sistema, depois de ele acabar com nossa Unidade?
Pressionei
“Ok” e mostrei meu melhor sorriso irônico, olhando direto para o centro da
lâmina.
“Pode
chamar de instinto ou pode chamar de palpite. Quando vocês conseguirem
programar isso em uma I.A., aí poderão nos dispensar com a consciência mais
tranquila. Até lá, boa sorte.”
Apertei
o botão novamente para finalizar a gravação. Olhei para o relógio em meu
cubículo: 22h15.
O
DT-Eye demorara duas horas para resolver o caso.
Eu
demorei quinze minutos a menos para concluir a investigação que não apenas
corrigiu sua conclusão e fez justiça à pobre menina de asas, mas também minou a
credibilidade que o sistema levara um ano para construir.
Com
um sorriso lembrei que, além disso, ainda tivera tempo para um uísque.
Nada
mal para um investigador prestes a se aposentar.
Alexandre Lobão
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