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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Asas



O champanhe estourou com um som seco, quase um tiro. Roberto Braga, o chefe da Unidade, sorriu sem convicção, encheu a primeira taça e a levantou na direção de todos.

- À nossa aposentadoria!

Os investigadores levantaram suas taças ao mesmo tempo, lentamente, como em uma coreografia melancólica.

A comemoração, se é que poderíamos chamá-la assim, continuou com um burburinho de vozes, quase todas soando desagradadas. Aproximei-me do chefe.

- E aí, Braga? Quer dizer que agora não tem mais volta, mesmo?

Ele levantou as sobrancelhas e fez um gesto de desalento com as mãos.

- Quem me dera, Martelli. O DT-Eye foi utilizado em todos os casos no último ano e provou que é, no mínimo, tão bom quanto nós. E muito mais rápido. A resolução já foi assinada pelo governador; temos um mês para acompanhar os últimos casos, empacotar nossas coisas e fechar o barraco.

- Todo mundo vai ser dispensado?

- Exceto os operadores do sistema, é claro.

Concordei com um aceno de cabeça, levantei o drinque em cumprimento e circulei pela festa com um gosto amargo na boca. Não sabia o que estava fazendo ali, mas tampouco me animei a retornar para casa. Lembranças demais.

Arrastei os passos até o outro lado do salão e joguei-me em minha cadeira, ficando escondido pelas paredes de meia altura do cubículo de trabalho. Era difícil acreditar que, em breve, minha carreira estaria terminada. Vinte e cinco anos de serviço, e pelo menos outros vinte e cinco anos produtivos pela frente... Era muito cedo para qualquer um se aposentar!

Com o peito ainda pesado puxei a lâmina, que estava debaixo de uma pilha de bugigangas, e pressionei no botão embutido na lateral. O vidro ficou leitoso, apresentando os ícones padrão da SecCorp, e cliquei quase por instinto no ícone do DT-Eye.

Na lista de “casos sem acompanhamento” havia um caso, ocorrido às 18h30 e resolvido pelo sistema às 20h30, quando chegaram os resultados da autópsia, menos de um minuto atrás. Segurei o dedo sobre o caso por alguns momentos, e o menu de contexto apareceu.

Acompanhar”.

Automaticamente, o DT-Eye mostrou o andamento do caso em formato de uma história de quadrinhos animados. Uma morte em cinco quadros.

18h00 – Renata Luzes, 29 anos, sai do prédio da Omni NanoCorp, onde trabalhava como nanoengenheira. O vídeo mostrava uma garota que não aparentava mais de 18 anos, andando apressada e com um ar perturbado. O endereço da empresa flutuava sobre a imagem do prédio.

18h20 – A vítima entra no centro de vendas Union SkyMall, claramente perturbada. “Claramente perturbada”. Nunca me acostumaria com as avaliações emocionais feitas pelo DT-Eye. O vídeo mostrava a garota gesticulando e falando sozinha. Cliquei no endereço que aparecia sobre o prédio e selecionei “rota para o quadro anterior”. Dois quarteirões. A vítima deve ter percorrido o espaço a pé, e pela demora deveria estar relutante.

18h25 – A vítima chega ao terraço panorâmico do centro de vendas, ainda mais perturbada. O vídeo mostrava a garota ainda falando, como se discutisse com alguém. Cliquei no ícone de texto e a transcrição do seu monólogo apareceu, um conjunto de argumentos soltos, como se ela estivesse respondendo a uma voz inexistente que, aparentemente, a induzia a fazer algo que não queria.

18h30 – A vítima salta do terraço panorâmico, atingindo o solo 3,5 segundos depois. Dois vídeos dividiam o quadro, um mostrando a garota subindo em uma cesta de reciclagem para atingir o topo da parede de vidro, e outro de longe, a queda vista por alguma câmera de rua.

20h30 – Conclusão do inquérito: Suicídio induzido por comportamento esquizofrênico. Morte por traumatismos múltiplos. Ausência de drogas no sangue e de histórico pessoal ou familiar de esquizofrenia indica provável EISIV. Caso resolvido.

E.I.S.I.V. Esquizofrenia Induzida por Superexposição à Imersão Virtual. Era cada vez mais comum ver cérebros viciados em I.V. falharem ao retornar à realidade, mas algo naquele caso parecia não se encaixar. Olhei novamente o último quadro, uma colagem de fotos do corpo na marquise do SkyMall e da autópsia. Um corpo magro, ligeiramente bronzeado, cabelos negros e curtos.

Balancei a cabeça, negativamente. Talvez eu apenas estivesse incomodado pelas grandes asas tatuadas nas suas costas, que evocavam lembranças que eu preferia manter enterradas.

Desliguei a lâmina e a coloquei no local devido, presa à parede do meu cubículo, talvez pela primeira vez desde que assumira aquele espaço. Suspirei. Teria um mês para arrumar aquela bagunça, mas hoje à noite eu precisava de algo mais forte que champanhe.

*          *          *

Saindo discretamente pelos fundos do salão, fugi para o bar em frente à SecCorp. Algumas caras conhecidas, incluindo alguns colegas da Unidade, se voltaram à minha entrada, mas segui para um canto escuro e cliquei no cardápio, pedindo um uísque duplo com gelo.

A aposentadoria da SecCorp seria suficiente para me manter, com alguma folga para eventuais luxos. Não que eu os tivesse. Mas o que me incomodava era o sentimento de inutilidade, a ideia de que metade de minha vida tinha sido aplicada em uma cruzada dispensável, substituível por uma I.A. provavelmente programada por outras I.A.s. Se eu ainda tivesse uma família, quem sabe...

Afoguei esta linha de pensamentos terminando o copo em um só gole. Uma careta, um clique, mais um uísque.

A luz direcionada sobre a mesa iluminou o novo copo e projetou uma sombra alaranjada sobre o tampo claro. Olhei por alguns instantes para a bebida, tentando descobrir o que estava errado. Só então percebi que o uísque estava mais escuro, eu havia esquecido de selecionar o gelo no pedido...

De repente, ficou claro o que não se encaixava naquele caso de suicídio. Pressionei o polegar no canto do menu confirmando o pagamento e saí de volta à SecCorp sem tocar na segunda bebida.

*          *          *

De volta ao cubículo, recarreguei o caso e cliquei no último quadro. O quadro se expandiu e tomou toda a superfície da lâmina, trazendo dados técnicos da autópsia na barra à esquerda e as fotos à direita. Deslizei diversas fotos para o lado até descobrir uma que mostrava a vítima, de costas.

Aproximei a foto, e verifiquei que minhas suspeitas estavam certas: o que me incomodara antes é que a vítima, Renata Luzes, não tinha a cor certa. As asas em suas costas eram claras, mas os braços e a parte da pele em volta do pescoço eram mais escuros, indicando que ela saía de casa com frequência suficiente para se bronzear, o que absolutamente não combinava com o perfil dos viciados em I.V.

Além disso, executando o vídeo a partir do momento da foto, confirmei que a tatuagem não brilhava nem se movia. Definitivamente, uma tatuagem retrô não combinava com um tecnoviciado.

“Evidências circunstanciais, se tivermos a boa vontade de chamar isso de evidências” – eu podia até imaginar o Braga me sacaneando – “deixe essa coisa de lado, para que estragar a festa de sua promissora aposentadoria com um pouco de trabalho?”

Ri da ironia e comecei a me aprofundar nos detalhes do caso. A autópsia revelava níveis maiores que o comum de bismuto, grapheno e germânio no sangue. Restos de nanos? Bem, isso poderia ser comum se ela tivesse sofrido alguma nanocirurgia recentemente, o que me levou ao seu histórico médico. Como ele não indicava nenhuma nanocirurgia, solicitei que o scanner da autópsia realizasse uma análise mais específica, procurando por sinais de nanoalterações realizadas recentemente.

O modelo 3D mostrou o corpo em azul, com pontos vermelhos nos dois olhos e ambos os ouvidos. Novamente no histórico médico, não localizei nenhum tipo de deficiência visual ou auditiva.

Seguindo a pista, ainda que tênue, solicitei comparação de imagens do rosto da garota de três meses antes (mais do que isso e os sinais dos nanos já teriam se dispersado) com as atuais. Virei os rostos em 3D de um lado para outro, aproximei as imagens, mas o resultado foi nulo: tanto olhos quanto orelhas não haviam sofrido nenhuma alteração cosmética.

Por que diabos, então, ela teria passado por uma cirurgia? Registrei o comentário e retornei à tela principal.

Comecei a me aprofundar em suas atividades. Nanoengenheira, ela trabalhava na divisão de pesquisas da Omni NanoCorp. Teria ela sido cobaia de algum tipo de testes? Isso não fazia sentido.

Selecionei então os registros de segurança da empresa dos últimos três meses, e procurei todas as ocorrências associadas à vítima.

Mais algumas filtragens e sobraram cerca de vinte operações de acesso negado. Renata havia tentado acessar o conteúdo de outra área da empresa, por diversas vezes e sem sucesso. No registro de sua última tentativa, verifiquei que ela havia vencido as duas barreiras virtuais de isolamento, mas não conseguira listar ou copiar nenhum conteúdo devido ao protocolo de segurança.

Recuperei os logs de acesso posteriores, e verifiquei que em nenhum momento ela conseguira acesso total às informações que procurava. Pouco depois das tentativas, seu login mudara, indicando que ela fora transferida para outro departamento.

Espionagem industrial? Aos poucos, um motivo para crises de consciência, ou mesmo para um assassinato, começava a se delinear. Mas ainda era muito pouco. Eu precisava saber se o segredo que Renata tentara acessar valia o suficiente para que desejassem silenciar alguém que chegara perto demais de descobri-lo.

Registrei os dados e meus comentários e segui adiante.

Meu próximo passo foi entrar na rede privada da Omni e tentar acessar a área segura.

Acesso negado.

Olhei por cima do cubículo e conferi que alguns colegas continuavam na festa de aposentadoria da Unidade, mas nenhum dava atenção à área dos cubículos de trabalho onde eu estava.

Entrei então com o login privilegiado da SecCorp, o que – teoricamente – apenas o chefe da Unidade poderia fazer.

Acesso negado.

Agora eu finalmente tinha uma evidência real de que algo estava errado na Omni NanoCorp. Por lei, toda informação deveria estar disponível para os logins privilegiados das Corporações de Segurança, e se eles tinham algo a esconder, talvez esse algo fosse grande o suficiente para que desejassem silenciar qualquer curioso.

Não que isso fosse um problema para mim.

Acessei o DT-Eye e solicitei a abertura de um novo processo de investigação, com quebra do sigilo indevido que infringia a lei da livre informação. Com o endereço registrado, o sistema levou alguns milésimos de segundo para verificar que a denúncia procedia, e menos de dez segundos para, usando o poder de computação em rede do Governo, conseguir o acesso às informações.

Com certeza, em algum lugar da Omni NanoCorp os alarmes devem ter soado, e técnicos já deveriam estar correndo para descobrir o que provocara o vazamento de informações. Mas era tarde demais: em minha lâmina, listas de projetos de nanos, modelos e relatórios eram rapidamente analisados, agrupados por assuntos e salvos no servidor da SecCorp como evidências.

No centro da nuvem de informações, resultante da análise dos documentos, duas palavras se destacavam: nanoconstructos sensoativos.

Um frio percorreu minha espinha, ao lembrar da onda de suicídios coletivos quinze anos antes, provocada por nanoconstructos que injetavam propagandas diretamente nos nervos óticos e auditivos e que culminou na proibição em todo globo de nanos que alterassem os sentidos.

Logo abaixo, na nuvem de palavras e imagens, saltavam aos olhos as palavras militar e restrito. Clicando em “militar” para torná-lo centro de uma nova nuvem, apareceram não apenas os nomes de duas agências de inteligência do governo, mas também uma dúzia de outros nomes, alguns de agências similares em outros países, e outros totalmente desconhecidos para mim. Com certeza a sujeira na Omni NanoCorp era grande.

Como a invasão aos dados havia sido coordenada pelo DT-Eye, a abertura do processo ocorreu automaticamente, e com uma confirmação liberei a expedição das ordens de restrição de bens e de acesso a informações para todos os envolvidos naquele projeto.

Mas ainda não era isso que eu estava procurando.

Retornei ao caso de Renata Luzes e vinculei o processo de investigação de dados recém-aberto como evidência, incluindo meus comentários.

Apesar de as evidências levarem a uma única conclusão, faltava ainda uma prova não circunstancial de que o suicídio dela havia sido induzido pela empresa.

Da lâmina, fiz nova solicitação ao scanner de autópsia, desta vez para realizar uma pesquisa por nanos remanescentes. Normalmente os nanos se autodestruíam automaticamente após seu uso, e seus restos eram eliminados naturalmente pelo corpo. No entanto, considerando que eram usados milhares, por vezes milhões de nanos em uma única operação, era comum que alguns apresentassem defeito e ficassem simplesmente inativos, presos a algum tecido ou vagando pelo corpo.

Dez minutos depois, o scanner havia detectado três nanos inativos nos olhos e sete nos ouvidos, o suficiente para uma engenharia reversa. Mais quinze minutos, e a análise microscópica de sua estrutura revelava a frequência que estavam pré-programados para responder.

“Peguei vocês, seus filhos da mãe!”

Registrei os nanos e a frequência como evidências no caso de Renata e retornei à tela inicial da lâmina, entrando agora no SAT – Sistema de Análise de Transmissões. Indiquei a localização do SkyMall, a hora da morte e a frequência a ser analisada.

O sistema demorou alguns instantes para recuperar os registros das transmissões das bases do SkyMall, e pouco mais que isso para decodificá-las.

Abri novamente o caso de Renata e mandei sobrepor as mensagens e imagens gravadas ao vídeo do terraço panorâmico, onde ela parecia conversar sozinha. O diálogo se completou perfeitamente, com a imagem de uma senhora, ligeiramente fora de foco e vista de um ângulo diferente do gravado pela câmera, conversando com a pobre garota.

“Você nunca prestou para nada, mesmo!”

“Mas, mãe...”

“Não tem mas nem meio mas. Você arruinou minha vida, abandonei tudo o que eu queria ser por você, e no fim, o que você faz? Me deixa para morrer abandonada!”

“Mãe, você nunca disse que se sentia solitária!”

“E é preciso dizer? Morri sozinha em casa, sem alguém até mesmo para segurar minha mão!”

“Mãe, para com isso! Eu não quero morrer!”

“Eu também não queria, querida. Mas agora podemos ficar juntas. Venha comigo e prometo cuidar de você...”

A raiva pintou de vermelho minha visão, e parei a execução do vídeo. Os animais haviam atormentado a garota até que ela se matasse, usando traumas e lembranças da mãe dela!

Olhei para aquele rosto de menina, congelado em um momento de desespero em um dos quadros do processo. Quanto tempo será que ela sofreu aquela tortura psicológica, até finalmente quebrar?

Vinte e cinco anos de trabalho, e ainda assim precisei respirar fundo para engolir a revolta com aquele caso.

Fechei o vídeo superposto e salvei-o como mais uma evidência.

Retornei à tela inicial do DT-Eye. Segurei o dedo sobre o caso de Renata e no menu de contexto que apareceu selecionei “Corrigir conclusão”.

Tem certeza?

Sim. Era a primeira correção de um veredicto do sistema, desde seu lançamento, um ano atrás.

No espaço para o “Nova conclusão” preenchi “Homicídio”.

Para o campo de “Provável culpado” arrastei os nomes dos executivos do organograma da Omni NanoCorp, desde o presidente até o chefe do departamento que conduzia a pesquisa com nanos sensoativos.

Confirma múltiplos culpados?”

Sim.

Adicionei os registros de provas e evidências que havia coletado e mandei o sistema validar o novo resultado das investigações.

O DT-Eye analisou as evidências, cruzou com as informações do outro processo que eu abrira e confirmou minhas conclusões.

Nova conclusão aprovada. Acusação de homicídio adicionada às acusações de infrações informacionais e de produção ilegal de constructos sensoativos.

Pressionei o botão de “ok” e, para minha surpresa, mais uma tela apareceu, com um vídeo do chefe do departamento de desenvolvimento de sistemas.

Como forma de melhorar o DT-Eye, gostaríamos de seu depoimento sobre a investigação realizada, respondendo a uma questão: O que o levou a discordar da conclusão do sistema e aprofundar as investigações? Pressione ok para iniciar a gravação.

Melhorar o sistema, depois de ele acabar com nossa Unidade?

Pressionei “Ok” e mostrei meu melhor sorriso irônico, olhando direto para o centro da lâmina.

“Pode chamar de instinto ou pode chamar de palpite. Quando vocês conseguirem programar isso em uma I.A., aí poderão nos dispensar com a consciência mais tranquila. Até lá, boa sorte.”

Apertei o botão novamente para finalizar a gravação. Olhei para o relógio em meu cubículo: 22h15.

O DT-Eye demorara duas horas para resolver o caso.

Eu demorei quinze minutos a menos para concluir a investigação que não apenas corrigiu sua conclusão e fez justiça à pobre menina de asas, mas também minou a credibilidade que o sistema levara um ano para construir.

Com um sorriso lembrei que, além disso, ainda tivera tempo para um uísque.

Nada mal para um investigador prestes a se aposentar.



Alexandre Lobão

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