“Vou morrer”.
Mas este foi meu segundo
pensamento.
A primeira coisa que me
veio à mente foi “Ainda existo!”
E o espanto por ainda
existir.
O primeiro teste foi bastante simples: projetamos a microcâmera
cinco minutos para o futuro, ela permaneceu lá por alguns centésimos de segundo
e retornou, trazendo uma foto da parede de fundo do laboratório. Mais precisamente, ela trouxe do futuro a
imagem, previamente definida, que projetamos a partir do quarto minuto.
Décadas de estudo e quilômetros de equações, e finalmente
o teorema basilar da Teoria Unificada das SuperCordas foi provado: era
possível, efetivamente, navegar em curvas hipostasiadas pelas soluções de
Gödel. E mais: como Jules Boltzmann, o
físico-chefe do CBPF[1], previra,
a navegação se dava em sentido oposto ao previsto inicialmente, ou seja,
navegava-se para o futuro, e não para o passado.
Desnecessário dizer que foi o evento científico mais
divulgado pela mídia e mais acompanhado de manchetes sensacionalistas de que se
tem notícia. Mas a equipe de Boltzmann estava focada demais nos próximos passos
para prestar atenção nesses detalhes.
E o próximo passo foi justamente tentar validar os
postulados de Dolfinger sobre a possibilidade de paradoxos, e a consequente
possível construção de um outro universo, com um encadeamento diferente. Boltzmann
acreditava firmemente que os paradoxos eram possíveis, mas tanto ele quanto o
resto de sua equipe – da qual tive orgulho de participar – acreditávamos em uma
abordagem ligeiramente diferente sobre os efeitos resultantes dos paradoxos
temporais.
O teste correu em duas etapas.
Na primeira etapa, a microcâmera foi enviada novamente
para o futuro, e trouxe de volta uma sequência de dez fotos de imagens que
foram aleatoriamente escolhidas e projetadas pelo computador do Centro. Quando,
cinco minutos depois, a câmera apareceu dentro do campo de contenção e o
computador sorteou e projetou as mesmas dez imagens a partir de um conjunto de
cerca de sete bilhões de imagens possíveis, ficou provado que a estrutura
temporal tende a evitar paradoxos.
Na segunda etapa, a microcâmera foi projetada pela
terceira vez ao futuro e retornou novamente com dez imagens. Rapidamente, a
equipe retirou a câmera da zona de projeção e a ligou ao computador, que removeu
as dez imagens do banco de imagens. Quando a câmera apareceu, vinda do passado,
o computador apresentou uma nova sequência de imagens, deixando a câmera
retornar ao passado com imagens diferentes das que havíamos conseguido cinco
minutos antes. No presente, nesse mesmo instante, as imagens armazenadas na
câmera passaram a ser as novas imagens.
Nossa equipe festejou muito mais esse segundo teste, pois
na verdade o primeiro teste apenas anunciara para o mundo o que já fazíamos há
vários anos com táquions, depois com grupos de átomos, depois com nanoconstructos.
O segundo teste, para nós, comprovava que toda a linha de
trabalho que vínhamos seguindo há anos era válida, e abria todo um novo horizonte
possível de experimentos: se o contínuo de tempo-espaço era flexível e se
ajustava às mudanças, poderíamos usar isso a nosso favor!
***
Por motivos diversos, desde o alto custo dos experimentos
até o protesto de grupos fanáticos que apregoavam que nossas experiências
levariam ao fim do mundo, a próxima projeção demorou quase um ano para ser
autorizada.
Boltzmann em pessoa fez questão de apertar o botão que
projetava a microcâmera cerca de dez anos no futuro – o tempo máximo que
conseguíamos até então – e a mantinha lá por quase vinte segundos, consumindo
energia suficiente para iluminar uma pequena cidade por um mês.
Como planejado pelo físico, a câmera retornou com uma
quantidade imensa de informação, enviada pela contraparte futura de nossa
equipe: todas as informações, incluindo equações, diagramas e fotos diversas
das descobertas do CBPF nos próximos dez anos. Conforme o combinado com a
equipe, todo o conhecimento trazido do futuro foi creditado aos seus
respectivos futuros descobridores, incluindo diversos trabalhos de físicos que
(ainda) não faziam parte da equipe, e mesmo de um estudante que ainda cursava o
ensino médio.
O esforço para estudo e aproveitamento do trabalho
começou imediatamente; e conforme projeto de lei aprovado meses antes, o
dinheiro oriundo das patentes reverteu-se para o Centro até a data de sua
descoberta futura, quando passaria então para o descobridor – ou para quem
seria o descobridor, caso as informações não tivessem vindo do futuro.
A imprensa, a essa altura, tinha se focado nos benefícios
imediatos das “maravilhas vindas do futuro” e em discussões éticas ou
religiosas tendo como pano de fundo a viagem temporal; desistindo de qualquer
tentativa de entender ou explicar a seus leitores os paradoxos envolvidos nessas
viagens ou os detalhes éticos e legais do empreendimento.
Paradoxo ou não, foi o dinheiro dessas patentes que
permitiu que Boltzmann criasse em menos de dois anos os protótipos das células
de carbono de alta energia, o gerador de fusão controlada e o novo projetor de
campo de distorção temporal, com tamanho e autonomia bem maiores que o
utilizado nos primeiros experimentos.
E foi aí que tudo deu errado.
***
Na primeira execução, Boltzmann sugeriu que projetássemos
um campo vazio, esperando receber algo do futuro. O contrato e as leis se
mantiveram as mesmas, com a diferença que agora não receberíamos apenas
informações, estando aptos a receber até mesmo modelos de invenções a serem
criadas. Em uma brincadeira estilo
“bolão”, cada cientista anotou o que achava que poderíamos receber do futuro, e
quem acertasse ou chegasse mais perto levaria o dinheiro apostado por
todos.
As apostas variaram desde “uma versão melhor do projetor
de campo”, aposta do próprio Boltzmann, até “vacinas para doenças que iriam
aparecer nos próximos anos”, de Fannete-Marie Shelley, francesa que se unira ao
grupo no correr dos últimos meses, atraída por uma patente creditada a ela por
um trabalho que ela ainda estava pensando em iniciar.
Mas ninguém esperava o que recebemos quando projetamos o
campo por trinta segundos, a exatos vinte anos no futuro: quando o efeito
fotoelétrico diminuiu e pudemos tirar os óculos de proteção, no centro da sala
uma estranha criatura nos encarava, balançando lentamente o corpo e virando a
cabeça de lado, enquanto piscava curiosamente os olhos multifacetados.
***
A seção do laboratório onde o campo era projetado era
hermeticamente selada, e só foi aberta dois dias depois, quando um novo local
para o bizarro ser foi preparado. Homens armados com bastões elétricos e armas,
devidamente protegidos por trajes de proteção biológica, encaminharam o ser
para um transporte e daí para a seção hospitalar que havia sido incrementada
com uma área de isolamento total. A coisa seguiu passivamente, sem oferecer
resistência.
A comoção gerada pelo aparecimento da criatura foi
grande, e pressão da imprensa e da opinião popular forçou o Centro a paralisar
todas as pesquisas até que desse uma explicação definitiva para o aparecimento
do suposto animal.
A equipe isolou-se no Centro, então, concentrando seus
esforços para decifrar aquela moderna esfinge.
***
A criatura, cujo pelo longo e rosa cobria todo o corpo,
foi logo batizada de “Bete”, em homenagem à secretária do Centro, cuja obsessão
por roupas e objetos rosa era notória. Os movimentos de seu corpo, em eterno
balançar e com os longos braços sempre dobrados, com as mãos quase unidas,
lembravam em muito os de um louva-a-deus. Era um bípede, quase se assemelhando
a um primata na aparência geral, mas com olhos e um formato de rosto que
evocavam um quê do reino dos insetos. Nas raras vezes em que emitia algum som,
ele soava como uma série de estalidos gerados pela boca, sem participação da
garganta.
Afora as óbvias diferenças externas, seu corpo era
estranhamente humano, com pulmões, rins e alguns outros órgãos idênticos aos
humanos. O coração era maior e batia cerca de duzentas vezes por minuto, e o
cérebro avantajado e complexo sugeria capacidade cognitiva superior à dos
primatas. Estranhamente, o animal
parecia assexuado, e alguns órgãos desconhecidos permaneciam inativos em seu
corpo, o que levou a uma série de teorias, todas inconclusivas.
O diagnóstico ao fim de seis meses foi que o ser não
carregava nenhuma doença e não representava perigo aos humanos. Além disso, era
pacífico e obedecia ordens, o que levou a equipe do Centro a sugerir que
provavelmente era algum tipo de ser geneticamente modificado para realizar
atividades básicas para a sociedade do futuro.
Os cientistas estavam preparando uma apresentação do Bete
aberta ao público em geral, para demonstrar que o ser era inofensivo, quando
ele escapou, fugindo para o Morro do Pasmado, perto do Centro. Na fuga, ele
matou sete pessoas, se movimentando em uma velocidade que as câmeras de
segurança mal registraram.
Três meses de buscas infrutíferas depois, um grupo de uma
dezena de Betes atacou uma igreja evangélica na favela da Rocinha, matando diversos
fiéis e raptando outros tantos.
Um ano após o primeiro ataque, o Rio de Janeiro precisou
ser evacuado.
Isso foi há quase dezenove anos. Desde então, a situação
piorou em muito.
***
Nós, os remanescentes da equipe original de Boltzmann, com
o apoio do que havia restado do governo, gastamos os últimos anos, e muitas
vidas, criando e aperfeiçoando um homeotraje – uma roupa semelhante a um traje
de mergulho, composta por nanoconstructos que mantêm sua superfície externa
exatamente à temperatura ambiente. Como os Betes enxergam apenas na zona dos
raios infravermelhos, basicamente ficamos invisíveis para eles. O traje se
completa com borracha de alto impacto e isolamento acústico, na tentativa de
nos deixar, também, inaudíveis para os monstros.
Com a queda final das linhas de comunicação e dos últimos
resquícios de governo, restamos nós três, no laboratório escondido no pico das
Agulhas Negras. Com o aproximar da data fatal, fizemos um sorteio, e restaram a
mim o homeotraje e a missão suicida.
***
Meus colegas deixaram-me o mais próximo possível do Rio,
trafegando por locais que sabíamos ser de pouco interesse para os Betes. Com um
pouco de sorte, sobraram apenas algumas dezenas de quilômetros para eu
percorrer a pé. A despedida foi calorosa, mas sem lágrimas. Não nos sobraram
lágrimas, depois dos últimos anos.
Quanto mais eu me aproximava de Botafogo, mais lentamente
eu precisava ir para não ser descoberto. Cheguei a passar um dia inteiro
imóvel, escondido em um nicho, com medo até de respirar mais ruidosamente. Felizmente, a maioria das criaturas dormia de
noite, o que me dava uma boa liberdade de movimento com o homeotraje.
Mas mais do que medo, o que senti foi surpresa: os Betes
eram muito mais organizados e inteligentes do que pensávamos. Abandonei
imediatamente a ideia de que eles eram marginalmente inteligentes quando,
escondido, vi pela primeira vez dois deles conversando, as línguas estalando em
diversos tons enquanto os braços dançavam em gestos quase humanos. Quando os vi utilizando instrumentos
complexos, tanto alguns que deixamos para trás como outros que não reconheci,
percebi que a humanidade estava fadada à extinção.
A menos que minha missão tivesse sucesso.
***
No dia e hora exatos, eu estava lá.
O laboratório do CBPF havia se tornado, aparentemente, o
centro de algum tipo de culto dos Betes. As criaturas rosadas, algumas delas se
destacando por faixas de pano finamente bordadas em torno da cabeça, circulavam
lentamente entre as salas do antigo centro. Eu passara a última semana para
conseguir chegar ao laboratório de projeção, e os últimos dois dias sem comer,
esperando em um canto escondido.
Duas horas antes do momento certo, dez ou doze das criaturas
entraram na sala. Como se soubessem o que iria acontecer – diabos, com certeza sabiam! –, sentaram em um círculo em torno da
zona onde, em breve, seria gerado o campo de projeção que conectaria o presente
com vinte anos atrás.
Quando faltavam quinze minutos, os Betes começaram a
entoar um cântico exótico, enquanto um deles, que tinha uma faixa bordada à
cabeça e outra à cintura, se levantou. Lentamente, a criatura removeu as faixas
e se aproximou do centro do círculo, ficando à espera.
O cântico soou mais alto, e as criaturas pareceram entrar
em uma espécie de transe. A seguir, a sala foi iluminada por um jorro de luz, quando
o campo gerado pela minha antiga equipe se formou no centro da sala. O visor do
capacete compensou o excesso de luz, permitindo que eu visse o que estava
ocorrendo.
O Bete no centro do círculo cumprimentou os demais com um
gesto ritualístico, dando um passo e entrando inteiramente na zona de projeção,
que iria se desligar em mais vinte e cinco segundos.
Rapidamente, mas evitando barulhos, corri para o campo de
projeção e estendi o braço até sua zona limítrofe. A interferência dos metais
pesados do traje, como já sabíamos, fez com que o campo entrasse em colapso no
momento em que a projeção iria se encerrar.
***
O brilho do campo flutuou e se apagou abruptamente, com
um estrondo que indicava que um vácuo se formara na zona de projeção.
Imediatamente, Boltzmann sabia que algo dera errado. O
vácuo só ocorreria se a porção do presente projetada para o futuro houvesse,
por algum motivo, deixado de existir no presente.
Com efeito, ao retirar os óculos, os cientistas do CBDF
constataram que o experimento falhara.
Ninguém ganhou o “bolão”, a imprensa e os grupos radicais
alardearam o fracasso, sugerindo motivos diversos.
A equipe do Centro, no entanto, tinha verbas para
continuar suas experiências.
Verbas, e tempo.
***
Os postulados de Dolfinger contribuíram decisivamente,
anos depois de sua morte, para o estabelecimento da Teoria Unificada das
SuperCordas.
Segundo Dolfinger, paradoxos temporais eram possíveis, e
suas equações indicavam que os paradoxos geravam universos diferentes, com
novos encadeamentos temporais. Infinitos universos, para infinitos paradoxos
possíveis.
Jules Boltzmann, por outro lado, criou toda uma nova
série de equações que se baseavam na ideia de que não havia nenhum outro
universo além do nosso. Seu trabalho se encadeava com as equações de Dolfinger
ao estabelecer que valores infinitos e o zero se equivaliam.
Apesar de não havermos conseguido nenhuma prova
experimental sobre este ponto específico, todo o trabalho do CBPF se baseava na
crença de que as ideias de Boltzmann eram válidas.
Por isso, ao ver que o campo de projeção se desfizera,
lançando pequenos pedaços do Bete e de meu braço por todo o laboratório, meu
primeiro pensamento foi de surpresa:
“Ainda existo!”
Então, a dor me atingiu
e vi os Betes do círculo começarem a se levantar.
E foi quando pensei:
“Vou morrer”.
Alexandre Lobão
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