O relógio ainda não
dera nove horas, mas o balaio de verduras já estava vazio. Voltei animada para
casa, com a certeza do dever cumprido. Oba, já tinha dinheiro para o ingresso
da matinê do domingo. A alegria de ver o Tarzan todo lindo pulando de cipó em
cipó, acompanhado por Jane e pela macaca Chita, estava garantida. Com um pouco
de sorte, talvez o dinheiro desse até para um saquinho de pipocas e um picolé
de amendoim, quem sabe?
A animação, contudo,
não era completa, pois a venda dos chuchus, os últimos legumes do balaio,
sempre os de saída mais difícil, deixara dentro de mim um cantinho sombreado.
Como conhecia a clientela, saía de casa bem cedo para oferecer as cabeças de
alface, os molhos de couve, salsa, cebolinha, mostarda, acelga e almeirão
primeiro, pois murchavam à toa, em sua verde fragilidade. A dona do hotel perto
da ponte de cimento via as verduras em primeira mão, e geralmente ficava com as
de folhas. Depois era a vez dos tomates graúdos, também bastante disputados.
Mas os chuchus, ah, os chuchus, mesmo novinhos e claros ficavam no fundo do
balaio, duros de carregar e de vender.
Até sua coleta era
difícil, já que a rama que tínhamos na cerca espalhou-se pelo telhado da casa.
Mal o dia clareava, mamãe pegava a escada para eu subir e andar de gatinhas
sobre as telhas, procurando os frutos que se ocultavam debaixo das folhas, em
geral mais bonitos e palatáveis. Fazíamos tudo em silêncio, para que papai não
soubesse de nossa estripulia, responsável pela quebra de várias telhas, que
volta e meia ele tinha de mandar arrumar.
Minhas andanças pela
cidadezinha incluíam a zona boêmia, na época conhecida como “Coreia”, um
amontoado de casinhas no final de uma rua central e comprida. Conhecia todas as
“meninas”, que me recebiam bem, oferecendo-me broa de milho ou farinha de fubá
torrado acompanhada de café, inhame com melado, batata-doce com açúcar e canela
e outras iguarias. Mamãe sabia, mas não se opunha – provavelmente confiante na
ética das “meninas” em relação a uma criança de nove anos.
Meio ressabiada, eu
entrava nas casinhas, só aceitava ir até as cozinhas minúsculas, evitando
cuidadosamente os quartos. Que, aliás, eram completamente assépticos e
inofensivos à luz do dia, minúsculos eles também, separados do resto da casa
por cortinas feitas de tiras de plástico ou de contas de lágrimas, que
balançavam quando o vento batia. Só uma vez consegui olhar um quarto por
dentro, mas tudo foi tão rápido que vi apenas a lâmpada coberta por algo que me
pareceu um lenço vermelho.
As cozinhas tinham
fogão de lenha e prateleiras cobertas de folhas de papel de seda recortadas de
florezinhas, nas cores azul ou verde. Lembro-me do brilho das panelas e dos
limpíssimos tachos de fazer doce. Sobre as chapas dos fogões reinavam os bules
esmaltados, cheios de café adoçado com rapadura, ralo demais e com gosto de
palha.
Gostava especialmente
de uma das moradoras, a Madá, que tinha corpo de violão e lembrava um pouco a
atriz Sarita Montiel. Ao contrário da espanhola, tinha voz de taquara rachada,
em completo desacordo com suas curvas e sua robustez. Usava um perfume muito
forte e saias tão justas que não conseguia sentar-se direito. Era a mais gentil
de todas, sempre querendo me agradar.
Naquela manhã, provavelmente
de maio ou junho, fazia um frio terrível e eu estava sem paletó. Consegui
vender tudo bem cedo, com exceção, é claro, dos chuchus. Meus braços doíam de
tanto carregar o balaio, os chuchus branquelos e fresquinhos, ainda com gotas
de orvalho, pesavam como pedras. Eu os olhava e tinha vontade de atirá-los rio
abaixo. Já estava morta de antipatia do jeito deles, sem cor, sem nenhuma
“personalidade leguminosa”, sempre adquirindo o gosto do tempero que a gente
põe na panela, coisa mais entojada de vender é impossível. Bati em várias
portas, todos que me atendiam diziam que tinham rama em casa; como vender
tijolos para oleiros?
Sacudindo o balaio
com raiva, mudando-o de braço a cada instante, fui andando depressa até chegar
às casas das “meninas”. De novo, a mesma resposta negativa. A casinha de Madá,
a penúltima da rua, quase chegando ao pasto, estava com a porta aberta e
cheirava a café fresco. Recebeu-me com a mesma alegria de sempre, e disse que
viajaria no dia seguinte para Suaçuí, para visitar uma prima. Comprou todos os
chuchus, pois a prima, disse, iria adorar o presente, comentando que Suaçuí não
era longe e que poderia acomodar os legumes numa bolsa de ráfia.
Voltei pensativa, bem
alegrinha com o rolinho de dinheiro na mão, mas achando a ideia da Madá muito
estranha. Onde ficaria Santa Maria do Suaçuí? Será que lá não havia chuchus? E
essa prima, será que apreciaria mesmo presente tão bizarro?
Uma de minhas irmãs
quis dramatizar a história, dizendo que tinha muita pena de Madá, do modo como
ela ganhou o dinheiro com que pagou os chuchus. Eu não me importei muito com
isso, ou quis não me importar, repetindo, mentalmente, que deveria me preocupar
era com os meus braços, que doíam de tanto carregar balaio.
Nunca me esqueci de
Suaçuí, cidade que permanece desconhecida para mim. Sei que suas origens
remontam à época das entradas e bandeiras. Fernão Dias Paes Leme, o mais
ilustre dos bandeirantes, se aventurou pela região em busca de um vale de onde
se avistavam, segundo a lenda, rios e areias de ouro, além de árvores com
frutas do mesmo metal. Consta que ele ficou encantado com a lindeza da Lagoa de
Vapabuçu e da Serra Resplandecente, atualmente chamada Serra do Cruzeiro. Fundado
oficialmente em 1920, o município possui aproximadamente quinze mil habitantes.
Sua economia é movimentada pelo comércio, pecuária, produção de laticínios e
agricultura.
Não sei se a prima da
Madá gostou dos chuchus ou se achou o presente a coisa mais sem graça do mundo,
como eu teria achado. Contudo, posso afirmar que Suaçuí ficou entranhada em
mim, assim como a Madá, as outras “meninas”, o gosto do café ralo, a leveza
inesquecível das mãos da mãe ao amarrar os molhos de folhas e o pequeno balaio
onde cabiam algumas verduras e todos os sonhos.
Rosângela Vieira Rocha
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