Eras para mim como cidade e eras
mais que isso: encanto, susto, medo, novo. Diferente sem dúvida. Assustador.
Assustadora cidade. Grande – não tanto quanto a minha – mas cheia de distâncias
pra mim inatingíveis. Ter que te engolir dá mais trabalho do que gostaria.
Engasgo, vomito, cuspo, mas tenho que te engolir, cidade, como se fosses mais
que cidade, corpo amado – este sim apetitoso a ser engolido sem engulhos.
Aqui no teu corpo, cidade, encontrei o corpo amado,
que me anda a ensinar a fazer digestão de ti, ou deglutição, ao menos. Vamos
por partes, má. Aqui me apresentaste um sabor de liberdade que dói de chorar.
Dona do corpo que sorve e engole e cospe não engole, e engasga até água, por
quê? O que fizeste de mim, saudade?
Cidade, teu nome é saudade: do amor que se foi sem
ter sido, daqueles tantos amores que me cercavam numa doce e suave redoma
eterna da infância adolescência sem perigos, ou com todos eles sob controle.
Cidade saudade que me trazes de novo o que nunca houve. O novo. O homem. O que
me dá o que nunca me deram antes, inteiro, sem resquício de dor, sujeira ou
maldade. O bom. O bom de mim, o bom de amar. Sem ideal. O abraço que me
descansa, o braço que transporta e conforta. O cansaço e o descanso, o esforço
para sair de mim e chegar no outro. Chegar no outro com tudo. Inteira.
Cidade saudade que me cria novas saudades, e agora,
quando chego lá, onde queria estar, pedaço de coração fica pra trás, esperando
retorno. Tenho que voltar. Antes tinha que voltar pra lá, agora tenho também
que voltar pra cá. E agora, cidade? Amar-te como àquele que me deste de
bandeja, numa noite quente, vazia, um corpo quente e vazio de mulher que sequer
procurava qualquer coisa. Agradecer-te e deixar-te? Tens culpa? Tenho eu?
Peras, uvas, maçãs, salada mista. Futuro chegado com
liames de passado atravessados na cama, espraiado corpo de homem com cheiro de
conhecido e íntimo, como se estivesse a vida toda ali, ao meu lado, e não há
cinco minutos. Cinco que são cinquenta. Cinquenta que são quinhentos. Amor,
será? Como se chama esta fruta que serviste madura, doce, gostosa, pronta para
ser sorvida, pronta para ser amada? Como se chama este homem, como se chama
este sentimento que me penetrou de manso e invadiu espaços antes ocupados pelo
imenso vazio e agora montou barracão e não parece sair?
Como te chamar, cidade? Saudade? Eu, forasteira, já
posso te chamar de minha, sendo tão pertencente à outra, à que amo e que deixei
sei lá por quê? (Sei bem, não minto. Deixei alguém, um tempo, uma infância a
ser página virada. Deixei? Deixei, mesmo?)
Eu sei. Vou voltar, sei que ainda vou voltar. Mas
para onde, agora? Qual o meu lugar? Quais braços me envolverão, aqui ou acolá?
Qual música embalará meu sono pesado ou leve, atenta à sua apneia, atenta ao
desvio do seu septo? Trilha sonora do passado ou do futuro? Qual meu presente,
se nem presente de aniversário ganhei, senão o amor dos meus 45 anos, aqueles
que encerram o período fértil que a natureza estipulou pra mim... Meu período
fértil, vou te explicar, cidade que não me conheces: acaba de começar.
Fertilidade muita, brotando, florando, verdejando, deitando raízes aéreas e
profundas, das duas. Fim de ciclo, não, início de ciclo. Uma canção para ele,
uma canção para mim, uma canção para o mundo, uma canção pra tocar no rádio.
Sim, período fértil.
Me aguarda, cidade onde habita minha saudade, onde
conjugo novos verbos, mas não deixo de saudar o longe, o perto, dores felizes,
dores agudas, dores graves. Me aguarda e verás do que sou capaz. Sou capaz de
te dar um baile, te dar um nó e ir embora, levar comigo o homem que me
conquistou – ou não, levá-lo no meu coração como um dia já aconteceu, para
viver de novo de lembranças, agora apenas com a diferença de que conheci a
felicidade. Não nos teus braços frios, cidade, mas nos quentes braços pretos do
meu branco, mãos de amor e carinho e segurança e força e alegria e esperteza e
calma e serenidade e inteligência e doçura e ternura e preguiça e trabalho e
cansaço e descanso e prazer e relaxamento e gozo e pertencimento e beleza e
fogo e paixão e habilidade e talento e foco e mira e entrega e abandono e tao.
Clara Arreguy
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