Na vida real, profissionais da escrita, como jornalistas, publicitários, redatores, assessores, escritores, nunca entregam os textos para publicação sem antes passar por uma etapa de reelaboração e revisão. Essa etapa varia de redator para redator. E todos confiam no trabalho do copidesque e do revisor. Milton Hatoum declara que reescreveu o livro Dois irmãos 23 vezes antes de entregá-lo para a editora. E é preciso considerar que a editora tem um serviço de revisão, e o autor deve aprovar a forma final do texto, após uma última leitura.
Gabriel
García Márquez confessa, nos agradecimentos de O general em seu labirinto, que
submeteu os originais a vários leitores antes da publicação. E não há um
jornalista sequer, por mais experiente que seja, que encaminhe um texto para
ser publicado na primeira versão. Faz parte do processo da escrita rever,
reescrever, reelaborar, revisar. E, nessa etapa, é natural consultar
dicionários, gramáticas, enciclopédias e colegas, para tirar dúvidas, seja de
conteúdo, seja de convenções da escrita ou de estilo.
Isso
porque nossa língua oferece muitas dificuldades. Vamos focalizar aqui apenas
algumas delas. A grafia do som (s), citada na matéria de O Globo (18/3/2013,
página 3), por exemplo, é muito difícil. Há muitas possibilidades na língua: um
c: acento; dois ss: assunto; um s: ensaio; x: máximo, trouxe; sc: nascer; sç:
cresça; xc: exceção; ç: ação. Grafias concorrentes como x e ch, s e z também
estão entre as que oferecem mais insegurança na língua portuguesa para o
redator.
E não há
uma regra produtiva que resolva todas as dúvidas. Portanto, para memorizar a
grafia convencional desses sons em cada um dos seus contextos, é necessário ter
muita convivência com a língua escrita, muita leitura. Carregamos, nós todos,
escritores, professores, jornalistas, incertezas pela vida afora. E, vez por
outra, precisamos consultar o dicionário para tirar dúvidas da escrita de
palavras de uso corriqueiro.
O
candidato do Enem está numa situação especial: sob pressão psicológica e de
tempo; sem autorização para consultar dicionários, gramáticas ou colegas; sem
tempo e sem calma para várias revisões. Essas condições de produção impedem que
o texto alcance o mesmo sucesso daqueles elaborados na vida real, que obedecem
a um processo natural de consultas e revisões.
Por isso,
a banca é orientada a ser mais concessiva e desconsiderar alguns desvios quando
o texto é muito bem estruturado; demonstra entendimento adequado do enunciado;
desenvolve o tema de forma consistente; apresenta e organiza informações,
fatos, opiniões e argumentos de maneira coerente e coesa; obedece às exigências
do gênero dissertativo-argumentativo e indica uma intervenção para solução do
problema focalizado, respeitando os direitos humanos.
Todos
esses elementos da versão avaliada indicam que, se houvesse uma segunda
oportunidade de reescrita do texto, ele chegaria facilmente a ser um texto
muito satisfatório para o nível de desenvolvimento da linguagem escrita
esperado para alunos do ensino médio. Desvios de grafia, acentuação e
concordância são evidentes e podem ser facilmente corrigidos numa revisão
cuidadosa. Problemas estruturais de pensamento e de organização das ideias são
muito mais complicados, exigem a reelaboração de períodos, a reorganização de
trechos inteiros, a substituição de segmentos, a eliminação de termos, a
reordenação de parágrafos.
É preciso
lembrar também que a banca trabalha com cinco níveis para atribuir a nota, e
não há nesses níveis divisões em décimos, centésimos ou milésimos. Assim, a
apenação não individualiza o desvio, mas considera o resultado geral do texto.
Além de todas essas observações, caso a banca não considerasse as condições de
produção dos textos do Enem, e se comportasse de forma rigorosa ao extremo,
provavelmente nenhuma vez fosse concedida a nota máxima.
Lucília
Garcez
Autora
de Técnica de redação (Editora Martins Fontes) e professora aposentada do
Instituto de Letras de UnB
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